Numa semana em que o transtorno do déficit de atenção (ou TDA) bombou nas redes sociais – certamente por causa da polêmica em torno do novo manual de diagnóstico de psiquiatria, o DSM-5 , e das excelentes reflexões que decorreram disso – e para marcar a Semana Mundial do Brincar (sim, isso existe!), gostaria de propor uma reflexão sobre a primeira infância. Especificamente, sobre aquele tempo em que não estamos nem trocando nem amamentando ou alimentando nem higienizando nem ninando o bebê. Estou me referindo ao tempo de brincar ou, simplesmente, de ESTAR com o bebê.
Para um adulto que pouco convive com crianças pequenas, basta pensar em passar tempo com um bebê que bate um medo, uma insegurança profunda. Ele não fala, não anda, mal consegue se locomover! O que vamos fazer juntos? O que ele está pensando? O que ele quer de mim? Será que vou/vamos morrer de tédio? Será que ele não ficaria melhor numa creche ou num curso ou na frente da televisão, para se sentir estimulado, para aprender, para desenvolver habilidades?
Não vou me atrever a sugerir que a exposição precoce a um ambiente com muitos estímulos seja a culpada pelo aumento da hiperatividade e do transtorno do déficit de atenção – até porque acho muito mais provável que o principal culpado por isso seja o excesso de diagnósticos duvidosos causados por pressão da indústria farmacêutica sobre médicos, aliado ao impulso de pais e professores de rotular e tratar de forma “eficiente” comportamentos indesejados (leia mais aqui e aqui). No entanto, acho no mínimo curioso que nos empenhamos tanto em deixar nossos bebês constantemente entretidos – e vale tudo para isso, desde brinquedos trambolhudos e barulhentos a iPads e galinhas pintadas na TV – e, no entanto, passados alguns anos, lamentamos a falta de interesse deles pela sobriedade da sala de aula e da inqueitude deles diante de uma simples peça de teatro.
Há alguns meses, me deparei com um texto num blog inglês que me deixou gritando “isso! isso! isso!” e me empolgou a ponto de eu pedir autorização para traduzi-lo. Finalmente consegui a permissão da autora, a psicóloga, educadora perinatal e fundadora da organização BabyCalm, Sarah Ockwell-Smith, para divulgar o texto em português aqui no blog. O original se chama “Do we do too much with our babies” e pode ser lido em inglês aqui. Embora ela não toque no assunto “déficit de atenção” ou “hiperatividade”, acredito que alguns pontos de seu texto se apliquem a uma reflexão, ou um questionamento, mais amplo no qual o TDA se insere: será que estamos criando e olhando para nossas crianças da forma mais saudável e sensata possível?
Enfim, leiam o texto e deixem suas impressões!
Será que fazemos demais com nossos bebês?
por Sarah Ockwell-Smith
Tenho pensado bastante sobre isso ultimamente e, quanto mais eu penso, mais eu acredito de verdade que estamos muito equivocados na nossa compreensão sobre bebês e primeira infância na nossa sociedade.
Uma rápida ida ao Google em busca de “atividades para bebês” perto da minha residência me dá uma lista de várias aulas às quais eu poderia levar meu bebê (imaginário!). Entre elas:
Massagem para bebês, yoga para bebês, Baby Sensory, natação para bebês, musicalidade, dança disco para bebês, francês para bebês, linguagem de sinais, ballet, ginástica para bebês e aulas para bebês e papais. Isso tudo sem contar as atividades para crianças pequenas (entre 1 e 3 anos): rugby para bebês, teatro, futebol e trampolim para bebês.
Caramba, quanta opção! Não é de se espantar que tantos pais me perguntem “o que devo fazer para entretê-lo” ou comentem “ele deve ficar tão entediado só ficando em casa comigo”. Quanto mais aulas desse tipo aparecem, quanto mais as mães sentem que deveriam estar “fazendo” algo com seus bebês, mantendo-os entretidos, se empenhando para promover o desenvolvimento dos mesmos, mais elas aprendem que, sozinhas, elas não são o suficiente para o filho, e sua medida de valor próprio se torna dependente das aulas às quais levam o bebê e dos equipamentos que disponibilizam para ele. Outra preocupação que tenho com essas aulas é que, mais uma vez, elas costumam desvalorizar os pais enquanto especialistas do próprio filho. Mães aprendem que há maneiras específicas de tocar em seu bebê, jeitos específicos de se mexer com eles, formas específicas de falar e cantar com eles (e que tudo isso requer uma dose de preparo profissional). Às vezes, esse ensino pode deixá-las menos confiantes em si mesmas, e na sua maneira particular de fazer as coisas. Elas podem se perguntar se estão “fazendo certo”. Sei que quando eu fiz um curso de massagem para bebês com o meu primeiro filho, acabei fazendo menos massagens nele depois do curso porque não conseguia me lembrar dos toques específicos (e das músicas que os acompanhavam) e fiquei preocupada se estava “fazendo o certo,” de forma que meus toques espontâneos diminuíram.
Não vou nem entrar no assunto “brinquedos e equipamentos ‘educativos’ feitos para ajudar o desenvolvimento do bebê” – entre eles, flash cards (cartões de memorização), sistemas de leitura para bebês e DVDs que ensinam línguas estrangeiras…
Minha pergunta é simples: por que achamos que precisamos de toda essa tralha? Quando paramos de acreditar que aquilo de que um bebê realmente precisa é tempo conosco? Quando passamos a desvalorizar a importância de integrar os bebês ao nosso dia a dia normal? Por que não acreditamos que somos o suficiente para nossos bebês? Por que não somos capazes de permitir que os bebês simplesmente sejam bebês?
O que é triste nesse caso é que pesquisas nos mostram claramente como os bebês aprendem e o que é importante nesse processo. Adoro essa frase da Maria Montessori: “Cuidar de uma criança deve ser norteado não pelo desejo de fazê-la aprender coisas, mas pelo empenho de sempre manter acesa dentro dela aquela chama cujo nome é inteligência”. Como, então, cultivar essa curiosidade natural? Permitindo que nossos bebês sejam os líderes e que ditem o ritmo de seu aprendizado? Ou sobrecarregando-os com diversos cursos e recursos que visam acelerar seu desenvolvimento?
Brincar
Brincamos com nossos bebês antes mesmo de eles nascerem, muitas vezes sem perceber que estamos brincando. Alisamos o barrigão, apertando delicadamente um pezinho estendido, e sentimos o bebê reagir. É espontâneo o desenrolar das brincadeiras após o nascimento – imitamos expressões faciais, nos escondemos e depois reaparecemos no campo de visão do bebê (“achou!”) fazemos cosquinha… tudo isso nós fazemos sem nos darmos conta. Brincar ensina tanta coisa a nossos bebês, sendo que a mais notável talvez seja esperar sua vez, o que vem a ser um dos componentes mais importantes da fala. Melanie Klein escreveu a fundo sobre a importância de brincar e da formação da fantasia e do simbolismo e é particularmente conhecida pela citação “Uma das muitas experiências interessantes e surpreendentes do iniciante em análise infantil é descobrir até em crianças muito jovens uma capacidade de percepção que costuma ser muito maior do que a do adulto”. O que acontece, então, quando sempre direcionamos a brincadeira do bebê? Através de brinquedos ou cursos específicos? O que acontece com a criatividade deles quando sempre estamos no comando?
Falar e Cantar
Pesquisas revelam que os bebês começam a adquirir linguagem antes mesmo de nascerem. Falar está no DNA dos bebês e o componente mais importante na aquisição de linguagem somos nós. Sem estarmos conscientes de tal, ensinamos nossos bebês a falar, ensinamos nossos bebês sobre musicalidade e ritmo, ensinamos a arte da conversação e de esperar a vez de falar. Ensinamos tudo isso não com a ajuda de cartões de memória ou cursinhos em DVD, mas com as interações diárias e ao falarmos com vozinha de bebê (Baby talk). Baby talk se refere ao jeito inconsciente de falarmos com os bebês: naturalmente afinamos a voz (usamos um tom mais agudo), exageramos as vogais e marcamos as consoantes, e também mudamos o vocabulário para ser mais apropriado à idade, encurtamos frases e simplificamos o conteúdo. O Baby talk também faz maior uso do contato olho no olho. Bebês têm uma inclinação natural a esse tipo de fala – por isso o nome Baby talk (fala de bebê). Nós todos possuímos essa incrível habilidade inata de ensinar linguagem aos bebês, então por que precisamos da ajuda e das ferramentas de terceiros?
Objetos cotidianos & ‘brinquedos’
Um objeto cotidiano será tão fascinante para seu bebê quanto um brinquedo educativo caro. Winnicott escreveu sobre a experiência da espátula – em que bebês recebiam um abaixador de língua para brincar – na qual ele observou um período de hesitação antes de começar a brincadeira. Winnicott descobriu que essa hesitação era de extrema importância e daí concluiu ser essencial permitir aos bebês esse período de hesitação para que pudessem desenvolver a criatividade. O conceito da brincadeira heurística, introduzido por Elinor Goldschmeid no início dos anos 1980, se refere à exploração dos objetos (e, portanto, das propriedades da natureza) a partir do ‘mundo real’. Ela deixou um legado precioso ao lançar o conceito de cestas de tesouro – cestas que contêm objetos caseiros e objetos da natureza (veja esse ótimo texto explicando como montar uma cesta de tesouro [em inglês]). Elinor acreditava que os bebês “sugam, pegam, tocam e sentem objetos, [treinando] comportamentos que promovem seu aprendizado mais primário”.
Nós e o ambiente
Os bebês podem aprender tanto simplesmente ficando no nosso colo: aprendem sobre movimento, se fortalecem, especialmente quando ficam barriga com barriga (tanto se fala de colocar o bebê de barriga para baixo, mas poucos pais sabem que colocar o bebê no sling barriga com barriga tem o mesmo efeito!) e talvez o mais importante de tudo é que aprendem sobre o ambiente à sua volta, tendo como base segura o contato humano. Pense no quão fascinante deve ser para um bebê dar uma volta na cidade? Ou passear no campo? São tantos sons, cheiros, imagens que você pode não apreciar, mas que são novidade para um bebê! Por isso é importante segurar o bebê (virado para você), porque quando esses estímulos se tornarem excessivos, eles podem se desligar. Quando ficam expostos diretamente a tudo (virados para frente no carregador ou longe de nós), eles podem se sentir sobrecarregados. O ponto essencial aqui é deixar que o bebê se desenvolva e aprenda no seu próprio ritmo. Como deve ser a vida de um bebê colocado num assento Bumbo na frente da televisão? Seu corpo forçado a ficar numa posição para a qual seus músculos e juntas não estão preparados, impossibilitado de sair da frente de uma TV emitindo sons altos e cores brilhantes? Como deve ser a vida de um bebê apoiado artificialmente na vertical em um aparelho de atividades cercado de plástico em cores berrantes, sons estridentes e luzes ofuscantes? Onde você preferiria aprender e em qual ambiente você se imagina estando mais naturalmente curioso e no qual você mais aprenderia: nas duas situações descritas acima ou no colo da sua mãe, contra seu peito, aquecido, apoiado numa posição fisiologicamente correta, sentindo o cheiro familiar dela, em um ambiente em que você fica livre para explorar, mas para o qual você pode retornar e “se desligar” quando se sente sobrecarregado?
Quando vamos permitir que nossos bebês simplesmente existam em paz? Quando vamos perceber suas verdadeiras necessidades? Temo que só nos distanciaremos mais e mais das verdadeiras necessidades dos bebês em nosso tempo.