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O nascimento (do ponto de vista do sujeito)

nascimento narrado pelo bebêGramática nunca foi o meu forte. Mas o conceito de objeto e sujeito foi fácil de entender. O sujeito é quem faz, quem age; o objeto é passivo, quem recebe a ação. Vamos levar esse aprendizado para a sala de parto. Quem nasce? O bebê, claro! E, pelo menos num parto natural, quem executa a ação do nascimento – quem se desliza, gira, emerge – é o bebê. E as exclamações no momento emocionante em que sai o corpinho deixam isso claro: “ela/ele nasceu!”

Infelizmente, nessa sociedade imediatista, isso foi se perdendo de vista. Sobretudo com a assistência ao parto cada vez mais padronizada e tecnocêntrica, o bebê é tratado como um objeto, o produto de um evento regido pela equipe médica. É o médico quem sabe (após dezenas de ultras, cardiotocos e exames) quando seu produto, quer dizer, o bebê, está pronto: “Mãezinha, o bebê já tá com 38 semanas; ele tá prontinho para nascer! Vamos marcar a cesárea?”. Alguns médicos apelam para a tática do medo: “Olha, sua placenta já está Grau 3, sinal de que está madura [OU: você está com pouco/ muito líquido]. Vamos retirar esse bebê antes que alguma coisa aconteça?” Em ambos os casos, fica claro que o bebê não passa de um objeto – um objeto muito precioso e delicado, sem dúvida – mas um mero objeto de cena nessa produção chamada “Nascimento”. Mesmo quando se fala em parto normal, fica parecendo que só a mãe tem a ganhar, com a recuperação mais tranquila etc. No entanto, bebê também se beneficia do parto, já que a cesárea implica em riscos aumentados para ele: de prematuridade, de desconforto respiratório, alergias, asma, obesidade e amamentação reduzida.

Como nos mostrou a gramática, esse entendimento do parto como um evento independente do bebê ignora um fato inegável: o bebê é o sujeito e não o objeto de seu nascimento. E é por isso que eu quis fazer esse exercício de descrever o nascimento sob o ponto de vista dele. Bora lá.

Num parto fisiológico, acompanhado por uma equipe que intervem somente quando necessário (ou seja, o mínimo possível), a mulher entra em trabalho de parto após receber um sinal enviado pelo bebê. Não há um consenso se o sinal vem de substâncias produzidas pelo pulmão ou pelas glândulas renais do bebê (ou talvez ambos), mas é fato que o primeiro sinal responsável pelo desencadeamento ou liberação dos hormônios do parto vem do bebê. É ele quem diz que está pronto para nascer (podendo estar com 38, 40, 42 semanas ou até mais); o cérebro da mãe simplesmente capta esse sinal e responde.

A primeira parte do trabalho de parto – chamada de pródromos ou fase latente – é lenta, e o bebê não participa ativamente. Se for muito sensível, sente como um abraço as contrações ainda fracas e, por hora, espaçadas do útero, acolchoadas pela água que o cerca. Com sorte, ele está de cabeça virada para baixo, com as costas viradas para o umbigo da mãe, na posição mais favorável para iniciar sua descida sinuosa pelo canal de parto  (mas, se não estiver, tudo bem também, pois ele é esperto, é capaz, e sua mãe escolheu bem a equipe caso precise mudar de posição ou de receber alguma intervenção). Como um atleta prestes a dar um mergulho, o bebê aperta o queixo em direção ao peito.

Na fase ativa, em que o útero de sua mãe trabalha com toda a força para afinar e abrir o colo (saída do útero), é capaz de o bebê sentir os abraços com mais força e, quem sabe, começar a contribuir para que a abertura aumente. Com sua cabeça, ele faz pressão no colo, ajudando-o a se abrir, e isso acontece com mais eficácia ainda após o rompimento (espontâneo) da bolsa – embora tenha bebê que prefira nascer empelicado, todo envolto na bolsa que o protegeu a gestação inteira. Com essas contrações fortes o apertando de forma nova e, talvez, assustadora, é possível que seus batimentos fiquem alterados, como se fosse uma grande montanha russa, cujo fim é uma incógnita (a equipe ficará de olho nisso, prontos para agir caso haja algum risco). Não podemos afirmar com segurança, mas quem sabe esse momento de tensão e de medo não seja a primeira lição que o bebê aprende sobre sua competência e sua força para superar adversidades?

Finalmente, os músculos do útero conseguiram: o colo encontra-se totalmente dilatado, abre-se o canal, e o bebê, literalmente, enxerga uma luz no fim de túnel. Pode ser que tudo pare nesse instante. Como se enfim, com o caminho livre, batesse um medo de passar para o outro lado: o que será que encontrará lá? Um mundo frio, hostil e estranho ou um lugar quente e seguro, não muito diferente de seu antigo lar, só que muito mais interessante? Talvez ele, e sua mãe, precisem de um tempinho para reunir a força e a coragem de atravessar, enfim, esse portal.

Passando para a segunda fase do trabalho de parto – a expulsão – o bebê desce ainda mais, e faz movimentos para facilitar a passagem pelo canal de parto, que tem como sustentação os ossos da bacia (em formato oval) e os músculos e tecidos macios do períneo (assoalho pélvico). Se sua mãe estiver sendo bem atendida, numa posição confortável, com liberdade de movimento e sem receber ordens de fazer força, a ação do útero, a gravidade e o saber instintivo mãe-e-bebê contribuirão para que ele vá descendo e girando – lentamente, com possíveis sobes e desces – esticando com cuidado o períneo elástico da mãe. A pressão do canal de parto, quente e seguro, mas talvez um tanto desconfortável para o pequenino, ajuda a apertar seus pulmões, para que o líquido seja expelido, o que facilitará a sua primeira respiração. A adrenalina liberada pela mãe começa a agir, impulsionando-o a terminar o percurso. Nessa decida pelos tecidos da mãe, além de expelir o líquido obsoleto do pulmões, o bebê ingere bactérias benéficas, que em seguida colonizarão seu intestino, contribuindo (e muito) para uma flora intestinal saudável e eficiente.

É um percurso difícil e desafiador, mas ele consegue e, enfim, emerge – talvez aos poucos, necessitando algumas contrações para sair de fato, talvez de uma vez só, de supetão. Mãos quentes o recepcionam. Ele está acordado e alerta, apesar do medo. Roxinho, amassadinho e gosmento, ele é colocado no ventre da mãe. É um susto, uma emoção e tanto, mas ele reconhece o cheiro, o calor, a voz. Recebe ainda o sangue oxigenado da placenta, mas já se acostuma, aos poucos, como o ar e o novo meio que o cerca. Alguém o cobre com uma manta macia e aos poucos, no corpo quente da mãe, próximo dos seios que o nutrirão, ele percebe que, apesar de estar em outro planeta, ele chegou, enfim, em casa.

Esse pequeno ser humano conseguiu! Embarcou numa viagem, trabalhou, persistiu. Pode ser que tenha passado, literalmente, por alguns apertos (hehe), mas foi vitorioso. E, no futuro, ele poderá dizer com orgulho que teve a sorte e a benção de ter sido um sujeito no próprio nascimento.

"Conseguimos, né, mamãe?" - (C) Jennifer Kellner Photography

“Conseguimos, né, mamãe?” – (C) Jennifer Kellner Photography

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