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CREMERJ, deixa eu ver se entendi…

No post anterior, tentei colocar em palavras algumas crenças sobre a fisiologia do parto e a autonomia das mulheres para começar um diálogo honesto com o CREMERJ, que, através das resoluções 265 e 266, tentou restringir a liberdade da gestante de escolher ser acompanhada por uma doula, obstetriz ou parteira em ambiente hospitalar e punir os médicos que escolhem honrar as escolhas de suas pacientes ao acompanhar ou dar apoio ao parto domiciliar.
Bom, como não obtive nenhuma resposta do Cremerj (hehe) e não sei o que eles acham das minhas colocações, resolvi fazer um exercício de imaginação: baseada na postura do Conselho nesses últimos meses e nas entrevistas à imprensa, vou tentar deduzir quais são as crenças dos médicos que compõem a cúpula do Cremerj e, para cada ponto levantado, farei um contraponto e uma sugestão.

Crença #1: O parto é um evento médico

Enquanto eu e outras ativistas do parto humanizado acreditamos que o parto é fisiológico, o Cremerj o enxerga como um evento médico; isto é, para que o parto transcorra bem, a presença e a atuação de um médico são imprescindíveis. Por isso, não cogita a possibilidade de partos ocorrerem fora do ambiente hospitalar e com equipes compostas por não-médicos (parteiras, obstetrizes e doulas). Como comentou a médica Mariane no post anterior, na visão deles, “o parto nunca foi um evento fisiológico, é um evento hemorrágico”.

  • Contraponto: se o parto não fosse um evento fisiológico, os seres humanos não teriam chegado até 2012 com uma população de quase 7 bilhões, sendo que os partos só migraram para o ambiente hospitalar em massa do início para o meio do século 20. Se não fosse fisiológico, o nascimento não aconteceria em gestantes em coma ou em mulheres subnutridas. Mesmo em condições adversas, as mulheres parem.
  • Sugestão: que tal assistirem a um parto totalmente fisiológico antes de pressupor que as mulheres precisam das intervenções da obstetrícia para parirem?

Crença #2: O parto domiciliar é muito arriscado, mesmo em gestações de baixo risco

A grande maioria dos médicos passou 5 anos de faculdade estudando patologias e aprendendo a corrigi-las com intervenções cirúrgicas e/ou farmacológicas. Em casos de ginecologistas obstetras, passaram a residência observando partos hospitalares, muitos de alto risco, por se tratarem de hospitais referência em risco, e pouquíssimos partos naturais (sem intervenções). Por conta desse histórico, surge no imaginário do médico um bando de possíveis, porém improváveis, complicações – sendo que somente uma pequena parcela destas complicações requer ação imediata. Pensam logo em: prolapso de cordão (0,14 – 0,16% dos partos), hemorragia pós-parto (aprox. 6%), placenta acreta (0,2%), distócia de ombro (aprox. 1,5%)… Enfim, o pensamento vai logo para a patologia (o problema)!

  • Contraponto: Estatisticamente, como eu já disse várias vezes, o parto domiciliar em mulheres de baixo risco é comparável ao parto normal hospitalar em se tratando de resultados maternos e neonatais. É claro que complicações podem ocorrer num parto domiciliar. Mas a equipe – geralmente enfermeira obstétrica ou obstetriz – está preparada para lidar com elas. Os profissionais que atendem partos em casa trazem material como oxigênio e ocitocina sintética, e foram treinados para administrá-los caso necessário (ex. em casos de hemorragia). Também estão prontos para reconhecer casos em que a transferência torna-se necessária, como um prolapso de cordão ou uma verdadeira distócia ou desproporção cefal0pélvica. A recomendação universal é que em casos de cesarianas de emergência (ou seja, por uma real indicação) haja um intervalo de 30 minutos entre a decisão de operar e o primeiro corte. Por essa razão, muitas equipes que atendem parto domiciliar só o fazem se o hospital mais próximo estiver a 20 minutos de distância da casa da gestante.
  • Sugestão: Que tal analisarem o banco de dados Cochrane e se informarem sobre a incidência dessas emergências todas? E reflitam sobre isso: a chance de complicações em uma cirurgia é bem maior que a chance de haver uma real complicação num parto domiciliar sem intervenção ou uso de drogas. Segundo este estudo canadense, a incidência de morbidade severa para mulheres de baixo risco em uma cesárea eletiva é de 2.73%. Pensem nisso.

Crença #3: Nossos interesses vêm antes da saúde dos pacientes

Em uma nota à imprensa, o presidente do Cremerj disse: “o médico não pode compactuar com um evento que pode trazer danos ao paciente”. Entende-se: o parto domiciliar traz danos aos pacientes e o parto hospitalar não. (Será que acham que a doula também traz danos?) Por coincidência, um parto natural, sem uso de métodos para acelerar o trabalho de parto, é muito menos rentável que uma série de cirurgias agendadas previamente num hospital “parceiro”.

  • Contraponto: Acho curioso o Cremerj nunca ter tomado medidas para reduzir o número vergonhoso de cesáreas eletivas (sem indicação) que representam a grande maioria das internações nas maternidades particulares do Rio e que trazem mais danos à paciente (e ao bebê) do que o parto normal. Enquanto isso, dispuseram de tempo e recursos para tentar proibir o parto domiciliar, que representa somente 5 dos 7.000 partos por mês no município do Rio de Janeiro (ou 0,7% contra 56,9% de cesáreas). Com isso, entendo o seguinte: mesmo representando danos maiores aos pacientes (mãe e filho), a cesárea é muito conveniente para os médicos, já que só pode ser feita por eles (monopólio) e ainda pode ser marcada com antecedência, facilitando a agenda (conveniência). Somente quando o parto acontece fora de sua esfera de poder (em casa ou em casa de parto), acompanhado por profissionais embasadas e engajadas (doulas, obstetrizes, parteiras – e o famoso “etc.”) é que ele incomoda o Conselho.
  • Sugestão: Tome vergonha na cara, Cremerj! Quer dizer que a mulher só tem autonomia para optar por aquilo que é conveniente para você? Cesariana eletiva pode, parto domiciliar não? Cadê a coerência? Me mostre as evidências!

Crença #4: A experiência da mulher no parto não importa

Quando o Cremerj fala sobre o parto, fala somente em termos médicos: o local do parto, a equipe, os riscos. Ao colocar o parto sob sua jurisprudência, num ambiente em que o médico dita as regras (o hospital), o conselho pretende garantir uma experiência conveniente, confortável e controlada. Para os médicos, claro. A gestante é meramente uma coadjuvante, cuja experiência subjetiva (desejos, medos, emoções) pouco/nada importa.

  • Contraponto: O parto é uma experiência transformadora para a mulher. É o momento em que vira mãe, em que conhece seu filho, em que seu corpo a surpreende, em que passa por sensações físicas e psíquicas únicas. A mulher não é só um corpo (uma “máquina” que precisa do seu “conserto”), mas um ser humano subjetivo, que sonha, deseja, teme, ora, transcende. Esse corpo que sente, essa pessoa, além de querer o melhor para si e para seu filho, quer também ser tratada com dignidade e respeito.
  • Sugestão: Que tal reconhecer que a experiência da mulher importa tanto quanto os resultados? A mulher quer o mesmo que você – um desfecho feliz, com mãe e bebê saudáveis – mas que ela não quer isso, compreende? Para fazer uma analogia, pense numa refeição. Você está com fome e quer se alimentar. Mas muito além de suprir suas necessidades calóricas e ingerir as vitaminas certas, você também quer um prato saboroso, temperado de acordo com seu gosto. Se puder escolher, você quer comer no seu restaurante predileto e pagar um preço justo. E aí, você acha que isso é querer demais?
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O que o CREMERJ não entende…

Se você vive no Rio e acompanha as notícias no jornal, deve estar sabendo das resoluções do CREMERJ (Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro) que entraram em vigor no dia 19/07 proibindo a participação do médico nos partos domiciliares (como principal acompanhante ou como “back-up” em caso de transferência para o hospital) e vedando a presença de “doulas, obstetrizes, parteiras etc” nos hospitais (não explicaram se o “etc” se referia a papagaios, periquitos e paparazzi ou se era restrito a profissionais que comprovadamente diminuem as taxas de intervenções, incluindo cirurgias desnecessárias, e melhoram a experiência da mulher no parto e pós-parto).

Bom, ironias à parte, a boa notícia é que ontem, dia 30/07, após uma rápida e maciça reação de ativistas e, principalmente, do COREN-RJ (Conselho Regional de Enfermagem do RJ) – que entrou com uma ação na Justiça contra a medida (arbitrária e inconstitucional) do Cremerj – o juiz federal substituto Gustavo Arruda Macedo suspendeu as tais resoluções, devolvendo à mulher carioca a liberdade que o Cremerj tentou arrancar-lhe há algumas semanas com sua ação covarde e ditatorial. A má notícia é que o Conselho disse que iria recorrer na Justiça. Afirmou ainda que “lamenta a decisão, já que as resoluções do Conselho visam proteger mães e bebês e oferecer as melhores condições de segurança para o parto. Os direitos de proteção à gestante e às crianças são assegurados pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, e as resoluções do Cremerj reforçam esses direitos.”

Confesso que a postura do Cremerj me causa profunda irritação. Desde que o assunto “parto domiciliar” voltou à pauta por causa da matéria do Fantástico, a atitude do conselho tem sido um tanto belicista. Mas em vez de esbravejar, vou tentar uma abordagem diferente. Para quem não sabe, sou editora de livros. Por acaso, ontem acompanhei um autor, o professor Stuart Diamond, numa palestra. O tema do livro Consiga o que você quer (Editora Sextante) e de sua palestra é a negociação, e como professor da Wharton Business School – uma das mais conceituadas escolas de negócios do mundo – o cara sabe do que está falando. Tirei o seguinte ensinamento do livro do Prof. Diamond: “para persuadir pessoas com percepções diferentes, você precisa começar pela noção de que seus ‘fatos’ – seus pensamentos, ideias e percepções – são invisíveis para elas. O que está claro para você pode nunca ter sido visto pelo outro” (minha ênfase).

Com isso em mente, surgiu a ideia para meu primeiro post sobre o assunto: esclarecer para o Cremerj, e para todos que estão inclinados a concordar com sua postura, o que eu e outras ativistas enxergamos que pode não ser evidente para quem não é tão apaixonado e bem-informado sobre o assunto (no caso, o parto humanizado). A ideia é tornar os nossos fatos visíveis e abrir espaço para uma discussão franca e respeitosa. Sem necessidade de resoluções ou ameaças. Combinado?

1º fato invisível: Quem faz o parto é a mulher

Lindo cartaz feito pela designer Thalita Dol Essinger para a Marcha pela Humanização do Parto.

A protagonista do parto é a mulher. Que fique claro: a gestante (sei lá, vai que entendem que é a doula ou a parteira!). O papel da equipe – incluindo do médico – é permitir que a mulher “faça” o parto: dilatando, se abrindo, expulsando o bebê e depois a placenta. A mulher fará esse trabalho melhor onde ela se sentir bem, e ao lado de quem faça bem a ela (não sou eu quem inventei isso – a posição é da OMS!). Como a função principal da doula é apoiar a mulher, oferecendo suporte emocional e físico, é bastante provável que, em se tratando de mulheres bem informadas que dispõem dessa opção, muitas vão optar por receberem esse tipo de acompanhamento.

2º fato invisível: O parto mais seguro é aquele que mais se aproxima do fisiológico

Já é batido dizer que o parto mais seguro para a mãe e para o bebê é o vaginal (aliás, o outro não é parto, é cirurgia, mas isso é assunto para outro post). Nenhum médico ousaria dizer o contrário, porque isso é fato estabelecido há décadas. Mas nós, ativistas da humanização, vamos além: entendemos, com base em estudos (como aqueles compilados pela revisão Cochrane) e nas recomendações da OMS, que o parto mais seguro é aquele que se mantém o mais próximo possível do fisiológico, sob o efeito dos hormônios e instintos naturais da mulher e do bebê (como nos outros animais). Estudos indicam que a grande maioria das gestações de baixo risco ocorrerão desta forma se a equipe evitar intervenções de rotina (desnecessárias até que se prove o contrário).

3º fato invisível: A mulher tem o direito de decidir o que será feito com o seu corpo

Essa afirmação me parece bastante óbvia, mas estou seguindo religiosamente o meu novo guru Stuart Diamond, então resolvi deixar registrado. O corpo mais afetado no parto é o da mulher. E o do bebê. A mulher, enquanto mãe, quer o melhor para o bebê (lógico). Então, na verdade, a opinião que interessa é a da mãe (já que ela sabe de si e, mais do que ninguém, sabe também do seu filho). Portanto, se a mãe quiser parir no hospital, em casa, ou se quiser ser operada, vale o que ela decidir. Se quiser parir deitada, na banheira, de quatro, ou de ponta cabeça (duvido), ok também. Se escolher parir na presença do médico, do marido, da doula, do cachorro e do papagaio, que seja! O Cremerj, ao tentar tirar o direito ao parto domiciliar e ao acompanhamento da doula (figura esta que apoia a mulher em tempo integral), acaba limitando esse direito e coloca o médico no papel tutelar de decidir sobre o corpo da mulher. O médico, a parteira e a doula não têm o direito de tomar decisões pela mulher nem de coagi-la a escolher a opção que ele/ela deseja: seu papel é informar, com base nas melhores práticas (evidências) e, em segundo lugar, nas suas experiências.

4º fato invisível: O médico tem o direito de praticar a medicina baseada em evidências

Talvez a maior injustiça da postura do Cremerj seja o cerceamento do direito do próprio médico de fazer o seu trabalho. Vou explicar: se não quiserem ser alvos de processos, arriscando até mesmo a cassação de seus registros, os obstetras humanizados são forçados a seguir a determinação do Conselho, mesmo que eles apoiem o parto em casa ou em centros de parto normal (em que a gestante é acompanhada por enfermeiras obstétricas ou obstetrizes, como no modelo vigente na Europa e no Japão) . Isso deve ser especialmente dificil quando as resoluções impostas vão contra as evidências científicas sobre melhores práticas,  o que é o caso tanto para partos domiciliares em mulheres de baixo risco (que são seguros tanto quanto partos hospitalares) quanto para a presença das doulas (que aumentam a satisfação materna e diminuem as intervenções).

5º fato invisível: A presença da doula é comprovadamente benéfica e condizente com melhores resultados maternos e neonatais

É a terceira vez que faço essa afirmação e, para não me repetir muito, vou parar por aqui. Mais informações no link para o estudo feito sobre apoio continuo a mulheres durante o trabalho de parto e parto (pdf aqui).

Vou parando por aqui. Mas, antes disso, queria pedir três coisas:

1. Compartilhem essas informações – quem sabe assim não chega até a caixa de entrada ou até o mural de alguém do Cremerj e possamos dialogar com as cartas na mesa?

2. Escrevam em seus blogs, murais, twitters sobre o direito SOBERANO da mulher de escolher onde, com quem e em que condição ela quer ganhar seu bebê.

3. Compareçam à Marcha Pela Humanização do Parto, que ocorrerá no Rio, no dia 5 de agosto, às 14:00, na praia de Ipanema (saindo do posto 9). O lindo convite, feito pela talentosa Thalita Dol Essinger, está abaixo.

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O nascimento (do ponto de vista do sujeito)

nascimento narrado pelo bebêGramática nunca foi o meu forte. Mas o conceito de objeto e sujeito foi fácil de entender. O sujeito é quem faz, quem age; o objeto é passivo, quem recebe a ação. Vamos levar esse aprendizado para a sala de parto. Quem nasce? O bebê, claro! E, pelo menos num parto natural, quem executa a ação do nascimento – quem se desliza, gira, emerge – é o bebê. E as exclamações no momento emocionante em que sai o corpinho deixam isso claro: “ela/ele nasceu!”

Infelizmente, nessa sociedade imediatista, isso foi se perdendo de vista. Sobretudo com a assistência ao parto cada vez mais padronizada e tecnocêntrica, o bebê é tratado como um objeto, o produto de um evento regido pela equipe médica. É o médico quem sabe (após dezenas de ultras, cardiotocos e exames) quando seu produto, quer dizer, o bebê, está pronto: “Mãezinha, o bebê já tá com 38 semanas; ele tá prontinho para nascer! Vamos marcar a cesárea?”. Alguns médicos apelam para a tática do medo: “Olha, sua placenta já está Grau 3, sinal de que está madura [OU: você está com pouco/ muito líquido]. Vamos retirar esse bebê antes que alguma coisa aconteça?” Em ambos os casos, fica claro que o bebê não passa de um objeto – um objeto muito precioso e delicado, sem dúvida – mas um mero objeto de cena nessa produção chamada “Nascimento”. Mesmo quando se fala em parto normal, fica parecendo que só a mãe tem a ganhar, com a recuperação mais tranquila etc. No entanto, bebê também se beneficia do parto, já que a cesárea implica em riscos aumentados para ele: de prematuridade, de desconforto respiratório, alergias, asma, obesidade e amamentação reduzida.

Como nos mostrou a gramática, esse entendimento do parto como um evento independente do bebê ignora um fato inegável: o bebê é o sujeito e não o objeto de seu nascimento. E é por isso que eu quis fazer esse exercício de descrever o nascimento sob o ponto de vista dele. Bora lá.

Num parto fisiológico, acompanhado por uma equipe que intervem somente quando necessário (ou seja, o mínimo possível), a mulher entra em trabalho de parto após receber um sinal enviado pelo bebê. Não há um consenso se o sinal vem de substâncias produzidas pelo pulmão ou pelas glândulas renais do bebê (ou talvez ambos), mas é fato que o primeiro sinal responsável pelo desencadeamento ou liberação dos hormônios do parto vem do bebê. É ele quem diz que está pronto para nascer (podendo estar com 38, 40, 42 semanas ou até mais); o cérebro da mãe simplesmente capta esse sinal e responde.

A primeira parte do trabalho de parto – chamada de pródromos ou fase latente – é lenta, e o bebê não participa ativamente. Se for muito sensível, sente como um abraço as contrações ainda fracas e, por hora, espaçadas do útero, acolchoadas pela água que o cerca. Com sorte, ele está de cabeça virada para baixo, com as costas viradas para o umbigo da mãe, na posição mais favorável para iniciar sua descida sinuosa pelo canal de parto  (mas, se não estiver, tudo bem também, pois ele é esperto, é capaz, e sua mãe escolheu bem a equipe caso precise mudar de posição ou de receber alguma intervenção). Como um atleta prestes a dar um mergulho, o bebê aperta o queixo em direção ao peito.

Na fase ativa, em que o útero de sua mãe trabalha com toda a força para afinar e abrir o colo (saída do útero), é capaz de o bebê sentir os abraços com mais força e, quem sabe, começar a contribuir para que a abertura aumente. Com sua cabeça, ele faz pressão no colo, ajudando-o a se abrir, e isso acontece com mais eficácia ainda após o rompimento (espontâneo) da bolsa – embora tenha bebê que prefira nascer empelicado, todo envolto na bolsa que o protegeu a gestação inteira. Com essas contrações fortes o apertando de forma nova e, talvez, assustadora, é possível que seus batimentos fiquem alterados, como se fosse uma grande montanha russa, cujo fim é uma incógnita (a equipe ficará de olho nisso, prontos para agir caso haja algum risco). Não podemos afirmar com segurança, mas quem sabe esse momento de tensão e de medo não seja a primeira lição que o bebê aprende sobre sua competência e sua força para superar adversidades?

Finalmente, os músculos do útero conseguiram: o colo encontra-se totalmente dilatado, abre-se o canal, e o bebê, literalmente, enxerga uma luz no fim de túnel. Pode ser que tudo pare nesse instante. Como se enfim, com o caminho livre, batesse um medo de passar para o outro lado: o que será que encontrará lá? Um mundo frio, hostil e estranho ou um lugar quente e seguro, não muito diferente de seu antigo lar, só que muito mais interessante? Talvez ele, e sua mãe, precisem de um tempinho para reunir a força e a coragem de atravessar, enfim, esse portal.

Passando para a segunda fase do trabalho de parto – a expulsão – o bebê desce ainda mais, e faz movimentos para facilitar a passagem pelo canal de parto, que tem como sustentação os ossos da bacia (em formato oval) e os músculos e tecidos macios do períneo (assoalho pélvico). Se sua mãe estiver sendo bem atendida, numa posição confortável, com liberdade de movimento e sem receber ordens de fazer força, a ação do útero, a gravidade e o saber instintivo mãe-e-bebê contribuirão para que ele vá descendo e girando – lentamente, com possíveis sobes e desces – esticando com cuidado o períneo elástico da mãe. A pressão do canal de parto, quente e seguro, mas talvez um tanto desconfortável para o pequenino, ajuda a apertar seus pulmões, para que o líquido seja expelido, o que facilitará a sua primeira respiração. A adrenalina liberada pela mãe começa a agir, impulsionando-o a terminar o percurso. Nessa decida pelos tecidos da mãe, além de expelir o líquido obsoleto do pulmões, o bebê ingere bactérias benéficas, que em seguida colonizarão seu intestino, contribuindo (e muito) para uma flora intestinal saudável e eficiente.

É um percurso difícil e desafiador, mas ele consegue e, enfim, emerge – talvez aos poucos, necessitando algumas contrações para sair de fato, talvez de uma vez só, de supetão. Mãos quentes o recepcionam. Ele está acordado e alerta, apesar do medo. Roxinho, amassadinho e gosmento, ele é colocado no ventre da mãe. É um susto, uma emoção e tanto, mas ele reconhece o cheiro, o calor, a voz. Recebe ainda o sangue oxigenado da placenta, mas já se acostuma, aos poucos, como o ar e o novo meio que o cerca. Alguém o cobre com uma manta macia e aos poucos, no corpo quente da mãe, próximo dos seios que o nutrirão, ele percebe que, apesar de estar em outro planeta, ele chegou, enfim, em casa.

Esse pequeno ser humano conseguiu! Embarcou numa viagem, trabalhou, persistiu. Pode ser que tenha passado, literalmente, por alguns apertos (hehe), mas foi vitorioso. E, no futuro, ele poderá dizer com orgulho que teve a sorte e a benção de ter sido um sujeito no próprio nascimento.

"Conseguimos, né, mamãe?" - (C) Jennifer Kellner Photography

“Conseguimos, né, mamãe?” – (C) Jennifer Kellner Photography

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