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Um brinde às mulheres bravas

[com direito a trilha sonora… ;-)]

Depois de dez dias de descanso na Europa e dois dias no novo emprego, ficou muito claro para mim que, mesmo me esforçando ao máximo para fugir dos rótulos, eu sou, de fato, uma ativista apaixonada por parto, mulheres e bebês. Não tive como negar: mesmo com a rica programação cultural das férias e os desafios que me esperam no trabalho, a paixão pelo universo do nascimento e maternidade conscientes brilhou mais forte. Sempre que havia uma rede wifi disponível, tirava meu smartphone da bolsa e entrava no Facebook – muito a contragosto do meu marido, diga-se de passagem – para acompanhar a incrível história da carioca que dispensou o obstetra durante o trabalho de parto porque ele decretou uma cesárea com 1cm de dilatação e, horas depois, conseguiu seu tão-sonhado VBAC (parto normal após cesárea prévia). Chorei de emoção com sua história, sua coragem e com o final feliz digno de filme hollywoodiano! Ah, se todas tivessem a sua força, nosso índice de cesárea não seria essa vergonha que é.

Depois, acompanhei o drama novelesco que se seguiu na comunidade virtual e real de doulas, médicos e parteiros que defendem (supostamente) o parto “humanizado”, mas que encenaram uma reação “oficial” de proporções totalmente descabidas. De novo, chorei, mas dessa vez de desespero, ao perceber o quanto ainda somos subjugadas a forças muito maiores, corporativistas, capitalistas, políticas, e o longo caminho que ainda temos pela frente para atingirmos o nível de respeito, em formas de opções reais e possíveis, oferecidas pela sociedade (pelo governo, pelo mercado), que merecemos. Todos os sapos que temos que engolir, e a humiliação que sofremos, nas mãos de gente egoísta ou ignorante, que não respeita as mulheres nem segue a medicina baseada em evidências. Mesmo após um dia de compras e comilança em Londres (minha cidade favorita!), não fiquei imune às lágrimas de tristeza e de raiva. Agora mesmo elas surgem com força e fúria.

Eu me revolto com qualquer pessoa ou sociedade que coloca interesses individuais ou de classe acima do direito SOBERANO que as mulheres deveriam ter de escolher o que vai entrar (e sair) de seus corpos quando e como bem entenderem. Isso vale para o sexo (“corpo estranho” entrando) e para o parto (“corpo estranho” saindo). Não podemos aceitar uma realidade em que terceiros tenham um poder maior sobre nossos corpos do que nós mesmas. O poder de nos enfiar goela abaixo uma cirurgia desnecessária, de cortar nossos corpos, de nos negar o direito de vivenciar a força primitiva e atemporal crescendo de nossas entranhas, de nos taxar de loucas, irresponsáveis ou coisa pior por assumir a decisão que é nossa de escolher como e onde queremos parir… Não posso aceitar e não vou ficar calada enquanto isso não mudar. Estou brava sim, e, como eu, muitas mulheres que carregam feridas físicas e psíquicas que dificilmente serão saradas.

Mas eu não estou falando de brindar quem é brava nesse sentido.  Na verdade, tenho horror a palavras zangadas – elas afastam, confundem e ofendem. Com elas, não chegaremos muito longe. A rede está cheia de mulheres revoltadas, zangadas… “bravas” no sentido vulgar da palavra. Mas as verdadeiras mulheres bravas às quais me refiro são mulheres que não só falam (ou escrevem) palavras bonitas, sábias ou inspiradoras; são aquelas que se levantam, se arriscam, e se expõem às consequências de suas ações. São mulheres que, com pequenos e grandes atos de bravura, atitudes convictas e postura impecável, fazem escolhas difíceis, porém certeiras e, por isso, merecem todo o meu respeito e minha reverência.

Levanto, então, a minha taça virtual para brindar essas duas mulheres bravas do Rio de Janeiro (e todas as outras “dirty little freaks” Brasil afora): sem vocês, sem a sua coragem para servir de exemplo e inspiração, ficaríamos inertes e impotentes, fechadas no mundinho seguro e “limpinho” da retórica e do idealismo. Em tempo, todas nós que acreditamos e lutamos para uma realidade obstétrica digna de um país que quer pertencer ao grupo dos países desenvolvidos teremos a coragem e a convicção de nos juntarmos a vocês. Eu já estou na fila, só esperando o meu momento.

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SBP, Nestlé e como essa aliança afeta você (parte 2)

No último post, falei sobre a ligação entre pediatras e as empresas que fabricam leite artificial, cujas tentativas de vender seu produto como um bom substituto do leite materno foram surpreendentemente bem sucedidas, considerando várias provas do contrário, como risco maior de infecção, hospitalização, problemas respiratórios e gastrointestinais, otite e diabetes do tipo 1, entre outros. O marketing e as pesquisas constantes para aproximar o leite artificial do leite materno – meta que está muito longe de se realizar – acabaram por conquistar até mesmo a fonte de maior confiança de jovens mães e pais: o pediatra. Uma maneira em que os pediatras introduzem o leite artificial na dieta dos bebês – começando até mesmo no berçario – é legitimando mitos (ou indicando estratégias que fazem esses mitos se tornarem realidade). É deles que vamos falar nesta segunda parte.

Mentira #2: Pouco leite é uma condição real e comum na população

O “diagnóstico” de pouco leite leva muitas mulheres a substituírem o peito pela mamadeira. A constatação de que uma mulher “não produz leite suficiente”, além de falsa (na maioria dos casos), é muito cruel. A culpa vai toda para ela, com se seu corpo fosse “defeituoso”, quando, na verdade, costuma ser uma consequência de recomendações que prejudicam a amamentação. Existem casos raros de mulheres que de fato produzem pouco leite (hipoplasia mamária e alguns casos de cirurgia prévia de redução mamária são dois exemplos), mas a grande maioria das mulheres pode amamentar – mesmo que precisem complementar. O que elas precisam é de orientação adequada e apoio. Infelizmente, me parece que muitos pediatras – seja por falta de conhecimento, tempo ou por não acreditarem nos processos naturais – deixam a mulher na mão nessas horas.

Um dos motivos é simples: eles não são treinados para ensinar a amamentação às mães e nem têm tempo para esse tipo de orientação. Na faculdade e na residência o foco é em doenças e tratamentos, e não nos processos fisiológicos, naturais. Outro fator complicador é a busca pela eficiência; pediatras têm consultórios lotados, às vezes cirurgias e atendimentos hospitalares também, e não sobra tempo para sentar com cada mãe e dar dicas sobre amamentação. Por isso, acabam oferecendo uma receita de bolo, onde assumem que cada mulher é igual. Recomendam por exemplo, amamentar em horários fixos, o que não dá certo para muitas mães, que teriam mais sucesso se oferecessem o peito sempre que o bebê mostrasse sinais de fome (“livre demanda”), assim adequando a produção de leite às necessidades do bebê. Cada par mãe-bebê é único, com necessidades únicas, e o pediatra não consegue dar conta disso. E quando a mulher esbarra em problemas, como dor, bico rachado, mastite, a primeira recomendação de muitos pediatras é entrar com o complemento porque é a solução mais rápida.

Vendedoras disfarçadas de enfermeiras num hospital da África do Sul (ca. 1950)

A segunda razão é menos “inocente”. É onde entram os produtores de leite artificial. Trata-se da influência direta dessas empresas para boicotar a amamentação. Hoje em dia, por causa dos esforços de órgãos importantes de saúde pública, há leis que protegem a sociedade desse tipo de marketing, e muito do que foi feito antigamente é proibido. Mas, só para você ter uma ideia, até o fim dos anos 80 era comum distribuir latas gratuitas de leite às mães de recém-nascidos (iniciando o efeito “bola de neve”, que descreverei a seguir) e, nas décadas de 50 a 70, a Nestlé colocava representantes vestidas de enfermeira para fazer demonstrações dos produtos dentro dos hospitais. Inacreditável? Veja as fotos!

Hoje, para não desafiar as leis, essa influência é mais sutil: os pediatras fazem “cursos de treinamento” ou recebem “dados científicos” diretamente de empresas como Nestlé, Abbott, Mead Johnson etc. Um exemplo engenhoso é a tabela usada para avaliar como os bebês crescem no primeiro ano de vida. Baseada em pesquisas patrocinadas por fabricantes de LA,  essa tabela, usada por muitos pediatras, traz dados do crescimento de bebês americanos (caucasianos) alimentados por fórmulas a base de leite de vaca (que é mais gordo que o leite humano). Ou seja, de acordo com a tabela, bebês alimentados no seio aparentam estar abaixo do peso, quando, na verdade, a base da pesquisa é que é tendenciosa a favor do aleitamento artificial. Com uma “norma” tão anormal, não é de se espantar que tanta gente “precise” entrar com o complemento.

Uma ação rotineira e prejudicial do pediatra é prescrever LA ao recém-nascido já no berçário. Infelizmente, isso se tornou comum hoje em dia, especialmente (mas não exclusivamente) no caso de bebês que foram nascidos antes da hora (pré-termo), e pode prejudicar a amamentação. Primeiro porque o bebê corre o risco de não ter muita força para mamar. Segundo porque os hormônios da mãe ainda não estão agindo com força total e o leite pode demorar mais para descer. E terceiro porque o peso que aquele bebê naturalmente perderia nos primeiros dias não existe (ele nasceu antes de engordar essas 100-300g adicionais) e, para não perder peso demais, o pediatra recomenda o complemento. Assim começa o efeito bola de neve.

O efeito bola de neve funciona assim: tomando o complemento, o bebê mama menos; mamando menos, a produção da mãe cai, levando-a a aumentar a quantidade de complemento, e por aí vai, até ela desistir de vez e terminar oferecendo o LA em tempo integral, frustrada e culpada por “não ter conseguido” fazer o melhor para seu filho. Para piorar a situação, ela sai por aí falando que “teve pouco leite”, propagando esse mito quando, na verdade, o problema pode ter sido a indicação inicial de iniciar o complementação com LA. Claro que há bebês que de fato crescem pouco ou perdem muito peso e precisam de uma ajudinha – mas dificilmente esse fenômeno seria tão comum como é atualmente se as mulheres recebessem uma boa orientação. No entanto, esse quadro de “pouco leite” que acaba em “meu leite secou” é o sonho da Nestlé. O que essas empresas querem é que a amamentação não dê certo, que você não consiga. E são elas que estão patrocinando cursos, viagens e livros para o seu pediatra. Dá pra aceitar uma coisa dessas?!

Mas não se desespere. É possível se precaver desse, e de outros, mitos. Abordarei mais alguns mitos na terceira parte e, por fim, apresentarei uma lista de dicas para quem quer atingir a meta de amamentar naturalmente, sem “precisar” dar dinheiro para a Nestlé (ou qualquer outra empresa) na compra de LA.

 

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Nem mais nem menos mãe

Outro dia entrei na página de Facebook de uma maternidade de São Paulo para comentar a questão dos altos índices de cesárea nos hospitais privados (nessa, o índice está em 93%). A maternidade estava se promovendo como uma das melhores no país e as ativistas do parto normal estavam incomodadas com esse paradoxo (para não dizer palhaçada). Afinal, a Organização Mundial de Saúde reconhece que mais de 15% de cesáreas não melhoram os índices de mortalidade infantil e só pioram os índices de mortalidade materna (um estudo no prestigioso The Lancet corrobora essa recomendação) – ou seja, uma taxa acima de 15% de cesáreas estaria colocando mais mulheres e mais bebês em risco. Acontece que o debate que começou com uma pergunta de utilidade pública – como a instituição poderia se empenhar para aumentar seus índices de parto normal (se é que isso é de interesse deles, o que é, infelizmente, pouco provável) – acabou caindo no pessoal.

Um dos primeiros comentários foi algo nessa linha: “mulheres que têm parto normal não são mais mães do que as que optam pela cesárea”. Não é a primeira vez que escuto esse mi-mi-mi discurso. Parece que não se pode levantar o assunto “como promover o parto normal” sem ofender alguém. E sempre (sem exceção) essa reação surge do nada, pegando todo mundo desprevenido.

Confesso que isso me tira do sério. Afinal, ninguém diz que se acha “mais mãe” que a irmã/amiga/prima/colega só porque ela pariu e a outra teve cesárea. Ninguém. Eu nunca ouvi nenhuma defensora do parto normal lançar mão de um argumento esdrúxulo como esse. Nós, as apaixonadas por parto, lutamos em prol das mulheres que querem parto normal (que representam 75% da nossa população, segundo esse estudo da Fiocruz), reivindicando mais transparências dos hospitais, mais ética dos médicos e mais acesso a informações baseadas em evidências para a população de maneira geral. A meta é melhorar as chances do parto normal para quem o deseja, e não diminuir quem pensa diferente.

Então, a pergunta que não quer calar é: por que essa reação aparentemente tão descabida?

Tenho duas possíveis explicações: uma do meu “diabinho” interior e outra do “anjinho”. O diabinho diria que essa reação tão forte e instantânea só poderia ser um efeito de ter tocado numa ferida psíquica muito grande. Ou seja, a própria mulher inconscientemente se sente “menas” frente à realização e ao poder daquela que pariu e, daí, surge a raiva e o impulso de se defender de seu inconsciente, afirmando o contrário do que ela realmente está sentindo. Nesse caso, a mera menção de uma mulher parindo é um gatilho que desencadeia seu complexo de inferioridade e revela toda a fragilidade de suas convicções.

O anjinho tem mais compaixão e pensa que, talvez, a dita cuja só esteja tendo uma reação natural à agressividade e à arrogância das ativistas e defensoras do parto normal que, talvez por terem a ciência (e a natureza) do seu lado, se acham donas da verdade. Ou seja, a pobre mulher se sente injustamente julgada, por um tom de voz ou um olhar de desdém da interlocutora, pelo simples fato de ter ousado escolher um outro caminho – que talvez não seja o “melhor” segundo as evidências, o Ministério da Saúde e a OMS, mas que ela julgou ser a “melhor” para ela. Nada mais do que seu direito.

É provável que nem o diabinho nem o anjinho estejam errados. Mas qual seria a solução?

“Cesariadas”: por favor, não levem para o pessoal a discussão sobre parto normal. Não estamos protestando suas escolhas pessoais e sim a falta de informação e opção real para as mulheres que querem passar pela experiência do parto. Isso é – ou deveria ser – um direito universal de todas as gestantes, mas que, nesse país e nessa cultura tecnocrática, regida por interesses econômicos e ideológicos, se tornou tão raro. Recomendo fortemente esse texto aqui, da incomparável Ana Cris Duarte.

Ativistas do parto: Cuidado com o tom de voz e os preconceitos na hora de abordar esse assunto, sobretudo na presença de mulheres que podem não compartilhar dos mesmos valores. Afinal, se você acredita no protagonismo da mulher, é preciso aceitar que esse protagonismo pode levar a uma escolha que você julga equivocada. Da mesma forma que você não gosta de ser chamada de “louca” ou “xiita”, a mulher que agendou seu “parto cesáreo” para uma data bonitinha não gosta de ver no seu olhar o rótulo de “pobre iludida” ou “desnaturada”. Encare como uma oportunidade para exercer os “músculos da compaixão” – ou, para usar o linguajar da tribo, a (sempre útil) “cara de alface”.

Talvez, com essas regrinhas básicas, seja possível atingir uma comunicação melhor e perceber que estamos todas buscando a mesma coisa: respeito.

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