Série Inspiração: Pais contemporâneos, bebês atemporais, por Meredith Small

Por mais (pós)modernos, urbanos e “antenados” que sejamos, a verdade é que nossos bebês são pré-históricos: biologicamente são iguaizinhos aos bebês que nasceram há 5000 anos. Também são idênticos aos bebês que nascem hoje em países e culturas muito diferentes da nossa. Essa é a tese que gerou um clássico americano, escrito pela antropóloga e professora da Universidade de Cornell Meredith Small, Our Babies, Ourselves (Nossos bebês e nós mesmos), publicado em 1998 pela Achor Books. O trecho de hoje é da conclusão desse livro maravilhoso (nunca editado no Brasil, infelizmente).

Pais contemporâneos, bebês atemporais

Criar filhos é um verdadeiro circo de egos e necessidades, limitações biológicas e expectativas evolutivas, que interagem entre si. Como em tudo na vida, ser pai é também uma série de concessões; não existe uma maneira perfeita, somente uma série de opções, um bando de caminhos possíveis, que direcionam os adultos na entrépida função de criar seus bebês. E é mesmo tão trabalhoso que faz sentido se perguntar por que as pessoas têm filhos afinal. Mas como me apontou Jim McKenna quando comentei sobre o investimento excessivo que os recém-nascidos requerem: “A evolução nunca nos prometeu um mar de rosas”. Nossa natureza envolve passar para frente nossos genes e isso significa pagar o preço que os bebês exigem. Criar filhos é para ser, de fato, muito trabalho, além de cansativo para o organismo adulto, porque é assim que o animal humano foi concebido. Se nós, enquanto pais, aceitarmos essa verdade fundamental – que ter um bebê e criá-lo até a idade adulta significa uma enorme limitação na vida, nos recursos, nos nossos aspectos físico e emocional e, considerando o tamanho da responsabilidade, não é para qualquer um – então estaremos efetivamente alinhados e de acordo com nossa herança evolutiva.

Na interseção dessa verdade fundamental está a saída de emergência da cultura, que nos permite tentar diversas maneiras de adminstrar essa função. A cultura e a tradição fazem parte da nossa flexibilidade, e nos podemos, portanto, mudar as normas da cultura porque somos a cultura. […] Ninguém espera que uma mãe passe a morar numa oca e viva da caça ou da coleta carregando um bebê nas costas. Mas é razoável sugerir que dormir com um bebê faz bem e que não o transformará numa criatura dependente e chorona. Talvez não queiramos alimentar um bebê continuamente como os Khoisan [um grupo étnico africano], mas uma mãe pode certamente decidir reduzir o intervalo entre as mamadas, ou alimentar sem horários fixos se ela quiser. E não existe vergonha alguma em usar o bebê num sling ou carregador em vez de deixá-lo no cercadinho. A cultura não deve ser uma ditadora, mas uma facilitadora.

E todos os pais têm a opção de rever e aceitar ou rejeitar sua bagagem cultural. Por exemplo, pais ocidentais com todas sua sofisticação tecnológica podem tomar decisões pessoais sobre os produtos que os fabricantes lhes empurram na tentativa de facilitar a vida. Trata-se de avaliar esses aparelhos sob um entendimento do bebê informado pela ótica da evolução e diversidade cultural, que nos dá a opção de rejeitar essas supostas inovações se quisermos. Podemos decidir que o cercadinho, quando tem gente disponível para segurar o bebê, não é a melhor opção, ou que usar um bebê conforto para confinar o bebê na sala de estar não é a maneira ideal para ele passar o dia. Podemos escolher reverter a direção da babá eletrônica e deixar que o bebê, sozinho em seu berço, se exponha aos barulhos da família ao invés de excluí-lo do convívio social.

O bebê humano não é meramente um aglomerado do reflexos que se transforma num adulto consciente. Os bebês foram, e continuam sendo, moldados pela evolução para passar pelo canal de parto, para expressar suas necessidades através do choro e da inquietação, e para interagir com o mundo a sua volta. […] É assim que o bebê adentra nesse mundo, mas não é necessariamente assim que o mundo o enxerga. Como os seres humanos demoram tanto para se desenvolverem, há oportunidades, e tempo, de sobra para desencontros e malentendidos ocorrerem enre bebês, cujas necessidades internas o levam a esperar certas coisas, e seus pais, que querem simplesmente seguir em frente com suas vidas. É a famosa faca de dois gumes – a evolução forneceu aos humanos um amplo campo de atuação, porém às vezes não fazemos ideia de como suprir nossas necessidade de forma mais eficiente. Somos destinados a fazer sexo, gerar bebês que contêm nossos genes, e assegurar que eles cheguem à idade para procriarem – este é o plano que a natureza tem para nós. Mas há muita folga no sistema, muito espaço para manobrar, e muitas formas de fazer errar. “A evolução nos deu uma arena em que cuidar de crianças pode ser aprendido”, explica o antropólogo Jim McKenna, “mas não nos diz o que deve ser aprendido, então aprendemos tudo quanto é maluquice sobre os bebês”. […]

Aceitar que os bebês são às vezes um fardo e depois tentar criá-los num estilo que não rompe com a díada pai/mãe-bebê, mas que facilita sim a vida, é o desafio que todos nós enfrentamos. Na maioria das vezes, isso significa confiar no instinto paterno/materno – isto é, o bom sense, que também evoluiu para ser um guia. E os bebês também nos ajudam, com seus braços erguidos, seus sorrisos sapecas, e seu choro e sua irritação, que nos informam se estamos no caminho certo.

*

Se você é leitor do blog, deve ter percebido que as ideias de Meredith Small e de outros adeptos da “etnopediatria” (como Harvey Karp e Jim McKenna) servem como pano de fundo aos posts sobre babywearingexterogestação e cólica. As minhas “primeiras impressões” sobre os valores que norteiam a criação de filhos em vários países também segue um pouco essa linha antropológica…

Mas quero deixar claro que não estou incentivando ninguém a romper com as convenções sociais da nossa cultura ou alegando que tudo o que fazemos é errado. O importante é saber que, com tanta informação disponível hoje sobre as práticas de outros povos e de outros tempos, temos a chance de aumentar nosso leque de opções ao invés de sermos obrigados a repetir, de forma automática e sem senso crítico, as atitudes de nossos amigos e parentes – especialmente se essas escolhas não estiverem alinhadas com o que julgamos ser melhor para nossos filhos nem com as nossas próprias crenças e necessidades. É essa diversidade de opções e liberdade de escolha que eu curto. Para usar as palavras da autora prestigiada:  A cultura não deve ser uma ditadora, mas uma facilitadora. 

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1 comentário

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Uma resposta para “Série Inspiração: Pais contemporâneos, bebês atemporais, por Meredith Small

  1. Patrícia

    Adorei e concordo plenamente!
    Nem todo recurso encontra na nossa situação uma necessidade muitas vezes… tem gente q adquire itens sem ter real necessidade, apenas para seguir o q é tido como “necessário”… como no exemplo do cercadinho, qdo há alguém q possa ficar ao lado do bb.
    Também sinto muitas vezes o “mecânico”, “automático” em algumas atitudes d pais, e me pergunto se param p analisar as coisas ou se simplesmente seguem o fluxo para não se sentirem diferentes, inexperientes ou sofrerem críticas…
    D fato bom senso, é fator determinante d êxito, na nossa árdua e igualmente recompensadora missão!

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