Série Inspiração: Perguntas profundas sobre o parto, por Sheila Kitzinger

Se tem alguém que admiro e penso “Putz, quero ser igual a ela quando eu crescer” esse alguém é a Sheila Kitzinger (bom, tem a J.K. Rowling também, mas aí é sonhar alto demais!). Sheila Kitzinger, como eu, é antropóloga e ativista do parto natural, e já escreveu mais de vinte livros. Agora uma senhora de cabelos brancos, ela continua escrevendo, lecionando e se pronunciando em prol do direito de escolher o local e a assistência para o parto.

O trecho abaixo é da introdução do livro Rediscovering Birth (Redescobrindo o Parto), publicado em 2000 pela Little, Brown e relançado no ano passado pela Pinter & Martin. A tradução é minha.

A sábia e bem humorada Sheila Kitzinger. A foto é da GETTY.

Perguntas profundas sobre o parto

Por milhares de anos as mulheres pariram cercadas por pessoas conhecidas em um local bastante familiar, geralmente a própria casa. O saber é compartilhado pelos participantes e o parto/nascimento é um evento social.

Nas atuais sociedades industriais do hemisfério norte, quando uma mulher engravida lhe apresentam várias opções. Mas se for o seu primeiro filho ela só tem uma vaga noção de como é a sensação de parir e de como outras mulheres passaram por isso. O parto é destacado do resto da vida das mulheres e aceito como sendo um assunto reservado ao saber dos especialistas. Como nossa cultura de parto/nascimento é intensamente medicalizada, as escolhas encontram-se nos extremos: ter uma peridural ou fazer sem analgesia; […] optar pela cesariana ou ter um parto vaginal; […] aceitar todas as intervenções propostas ou tentar um ‘parto natural’.

Mas não precisa ser assim. Para fazer escolhas genuínas convém ter uma perspectiva mais ampla. Uma mulher pode fazer uso das práticas e tecnologias da obstetrícia moderna se ou quando ela precisar delas. E ela pode explorar tudo o que sabemos sobre parto e nascimento ao longo do tempo e em diferentes culturas para conseguir partejar usando o conhecimento compartilhado de inúmeras mulheres. Enquanto reconhecemos que em muitas sociedades as mulheres têm vidas difíceis, é fácil ignorar os aspectos positivos de práticas tradicionais de parto e as muitas maneiras de manter o parto/nascimento no âmbito da normalidade, permitindo que aconteça de forma fisiológica, ao invés de ser controlado pela medicina.

Em grande parte das culturas industrializadas do hemisfério norte dá-se por certo um tipo específico de parto/nascimento.

Ele acontece no hospital, cercado por desconhecidos. A gravidez e o parto são “gerenciados” por cuidadores que pensam saber mais sobre o que está se passando do que a própria gestante. Seu corpo é visto como uma máquina sob constante risco de quebrar. A extração segura do bebê do corpo materno que o ameaça depende da habilidade técnica de um grupo de profissionais com um sistema de conhecimento hermético e exclusivo. O parto então é um evento médico e frequentemente cirúrgico.

Ter um bebê no hospital é tornar-se uma paciente. Você passa a ser uma integrante temporária de um sistema rigidamente organizado, hierárquico e burocrático. O procedimento de admissão é o momento em que a instituição toma posse do seu corpo. Trata-se de uma cerimônia em que você é cadastrada, classificada, examinada, registram os batimentos cardíacos fetais e medem a sua pressão.

Na maioria dos hospitais a mulher entrega a própria roupa, símbolo de sua individualidade. É provável que ela seja separada de amigos e parentes, com a exceção de um único acompanhante. Espera-se dela o mesmo de uma criança, que ela obedeça as instruções, evite chamar a atenção, e se comporte bem. Ela pode ser chamada pelo nome, mas não chamará o médico ou a médica pelo primeiro nome. Ou ela pode deixar de ter nome ao ser chamada pelos profissionais de ‘a cesárea do quarto 16’, ‘a multípara’, a ‘do parto induzido’ ou, pior de tudo, ‘a mulher com o plano de parto’. [*No Brasil prefere-se o reducionista e infantilizante “mãezinha”]

Quando os residentes de um hospital de Boston tentaram definir “uma boa paciente”, um médico respondeu: “Ela faz o que eu digo, escuta o que digo, acredita no que digo…” A boa paciente é dócil. Ela agradece os profissionais porque eles salvaram seu filho. Ela demonstra gratidão independente de o que foi feito com ela. Mulheres que se recusam a entrar nesse molde são ‘pacientes difíceis’.

O parto é regulado por hormônios artificiais frequentemente terminando numa cirurgia. A mulher é atendida por uma equipe profissional. Ela pode estar ligada a equipamentos eletrônicos, sedada da cintura para baixo por anestésicos e ter seu útero artificialmente estimulado. Aí fazem uma episiotomia nela, aplicam fórceps ou vácuo extrator no expulsivo, ou toma-se a decisão de fazer uma cesárea. Ou os médicos podem achar melhor evitar o trabalho de parto por completo, marcando uma cesariana eletiva. Algumas mulheres optam pela cesariana porque foram levadas a crer que esta é a forma mais fácil, segura e indolor de ter um bebê.

Toda instituição tem regras e normas práticas. Quanto maior a instituição, mais regras ela tem. Um hospital tem protocolos que facilitam sua administração, e possibilitam que aqueles no escalão mais alto regulem as ações de seus subordinados. A rotina garante que as pessoas cooperem em tarefas sem precisarem fazer perguntas constrangedoras nem pensar muito, então são raramente desafiadas. Quando uma pesquisa baseada em evidências é publicada mostrando que uma prática é inútil ou que faz mal, leva cerca de 15 anos para mudar a prática obstétrica. […]

O parto é um evento médico que geralmente acontece no hospital e é pensado de forma praticamente exclusiva sob a ótica do risco. Se você decide parir em casa é provável que tenha que superar muitos obstáculos criados pelo sistema médico. Parentes e amigos dirão: ‘Você é muito corajosa!’, ‘Você não fica com medo de algo dar errado?’ e, frequentemente, ‘Você está sendo egoísta’ ou ‘Você não está pensando no bebê’.

Um trabalho de parto normal de uma mulher saudável costuma ser tratado com todas as intervenções características de partos de alto risco. Tratado como se fosse de alto risco, o parto costuma se tornar de alto risco.

*

Esse trecho contém tanta sabedoria – frases para reler, sublinhar, compartilhar no Facebook e twittar – que não preciso dizer mais nada. Mas como o texto de Kitzinger não contém uma pergunta sequer (apesar do título), vou encerrar com uma: quais perguntas precisam ser feitas (para nós mesmas, os médicos, as seguradoras, e as instituições públicas e privadas de saúde) para melhorar a experiência do parto e do nascimento no Brasil e será que temos a coragem de fazê-las?

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5 Comentários

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5 Respostas para “Série Inspiração: Perguntas profundas sobre o parto, por Sheila Kitzinger

  1. Nao gostei do texto. Pena. Achei que ela fosse defender uma posicao intermediária entre a cesária programada e o parto em casa, mas o texto dela absolutamente chove no molhado e nao agrega em nada. Pena mesmo. Fiquei esperando algo melhor de uma pessoa que escreveu vinte livros sobre o assunto.
    Por que, no fundo, porque é que eu nao posso parir de parto normal no hospital, utilizando a tecnologia farmacologica e medica disponivel? nao vejo absolutamente problema nenhum em parir sem dor, com aparelhos ligados na minha metade de baixo – desde que eu e meu bebe possamos passar pelo trabalho de parto, e se for o caso, terminar numa cesária – o que eu absolutamente nao gostaria.
    A realidade é que toda a nossa sociedade é regrada e institucionalizada, falemos de hospital, de educacao, de mercado de trabalho. Claro que a maioria das pessoas nao gostaria de trabalhar das 8 as 5 todos os dias, gostariam de ter seus desejos e suas necessidades atendidas (em outras palavras, ter real flexibilidade para trabalhar quando “quer”, ou melhor, quando o corpo tá “afim”.) Mas nao é assim e as pessoas nao estao se rebelando por aí contra as 40 horas semanais. O sistema educacional tambem tem a sua rigidez, pois tambem é uma grande instituicao controlada por alguns.
    Nao fosse assim, o mundo seria o caos. Mas parece que só às gestante é que é permitido fazer alarde.
    bom, ovu parando por aqui porque essa discussao é muito maior do que o tema do post… :-)
    abraco!

    • A Sheila Kitzinger não está dizendo qual tipo de parto a pessoa deve ou não deve ter. O questionamento é mais profundo: quais são as nossas expectativas & por que temos tais expectativas (resposta: é cultural), e como podemos ir além delas se quisermos. Qualquer mulher pode parir no hospital, com os recursos que deseja (infelizmente, costuma vir junto o que ela NÃO deseja – mas aí é outra história), ou optar por uma cirurgia se preferir (apesar de que muitas o fazem por falta de opção ou de noção). O problema é quando a mulher não quer nenhuma dessas opções e não lhe é dada a oportunidade de vivenciar o parto como ela deseja e merece. É lamentável que nossa sociedade, que fornece tantas opções em outros campos (profissão, vestimenta, música, estilo de cabelo), ainda não reconhece o direito de escolher o local e o tipo de parto. Ou seja, a única posição que esse texto defende é a posição feminista: deixa a mulher escolher com base em todas as opções possíveis, e não só as opções extremas que a nossa sociedade possibilita. Obrigada pela comentário e pela chance que você me deu de explicar melhor o porquê de ter compartilhado esse texto. Abraço!

  2. Priscilla Bezerra

    De fato, o que é apontado no texto acima é a escassez de possibilidades que a gestante encontra no que diz respeito ao processo de nascimento do seu filho. Me parece, pelo que tenho lido, que esta falta de opções é embasada pela falta de informação daquela que parirá. Poxa, estou na minha primeira gestação e o pouco que sei sobre o processo, sei porque sou muito curiosa e tenho disposição para a leitura e para questionamentos. Após 5 meses de acompanhamento pré-natal, meu médico simplesmente não me informou sobre NADA, a única coisa que ele faz é verificar minha pressão arterial, peso, tamanho da barriga e anotar tudo isso no cartão da gestante. Até as dúvidas que levo, ele dá um jeito de me cortar e sempre dificulta para eu não conseguir perguntar. Outra questão que percebo, é a falta de consciência histórica dos indivíduos que nunca pararam para se perguntar como os nascimentos ocorriam antes de tamanha tecnologia. Enfim… gostei do texto, o trecho em que ela cita a descrição da paciente dócil, segundo algum médico, me lembrou Michel Foucault e a sociedade de controle.

  3. Fernanda

    Olá, gostaria de dizer minha opinião.
    Sou psicóloga, mãe que teve parto natural, esou muito eliz por eu ter sido tão sábia num dos momentos mais importante da minha vida. Pelo menos nesse …rs
    Eu gostei do texto que faz a propsta de pensarmos mais profundamente sobre uma possibilidade de reflexão de um momento ímpar, importante e intransferível. Falar depossibilidades de parto é abrir horizontes, para que a mulher não pense no que fazer com seu corpo, na hora do próprio parto, mas propõe uma reflexão de respeito e atenção ao seu corpo desde sempre, até mesmo ao momento de concepção. As coisas naturais já foram tão artificializadas e perdemos muito com isso. Tudo que é natural sabemos que faz mais sentido ao nosso ser em sua completude!

  4. Patrícia

    Sou super a favor do parto natural!
    Considero mais correto arcar com o ciclo normal da natureza, no entanto, particularmente prefiro fazê-lo com os recursos emergenciais disponíveis.
    Opto pelo normal, todavia em um hospital.
    Apesar d saber q elementos complicadores não sejam uma regra e sejam minoria, não consigo descartá-los, por saber q existem.
    Acho q prevenção é um bem, q em nada diminui e ainda pode acrescentar muitas das vezes…

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