Arquivo do mês: julho 2012

O que o CREMERJ não entende…

Se você vive no Rio e acompanha as notícias no jornal, deve estar sabendo das resoluções do CREMERJ (Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro) que entraram em vigor no dia 19/07 proibindo a participação do médico nos partos domiciliares (como principal acompanhante ou como “back-up” em caso de transferência para o hospital) e vedando a presença de “doulas, obstetrizes, parteiras etc” nos hospitais (não explicaram se o “etc” se referia a papagaios, periquitos e paparazzi ou se era restrito a profissionais que comprovadamente diminuem as taxas de intervenções, incluindo cirurgias desnecessárias, e melhoram a experiência da mulher no parto e pós-parto).

Bom, ironias à parte, a boa notícia é que ontem, dia 30/07, após uma rápida e maciça reação de ativistas e, principalmente, do COREN-RJ (Conselho Regional de Enfermagem do RJ) – que entrou com uma ação na Justiça contra a medida (arbitrária e inconstitucional) do Cremerj – o juiz federal substituto Gustavo Arruda Macedo suspendeu as tais resoluções, devolvendo à mulher carioca a liberdade que o Cremerj tentou arrancar-lhe há algumas semanas com sua ação covarde e ditatorial. A má notícia é que o Conselho disse que iria recorrer na Justiça. Afirmou ainda que “lamenta a decisão, já que as resoluções do Conselho visam proteger mães e bebês e oferecer as melhores condições de segurança para o parto. Os direitos de proteção à gestante e às crianças são assegurados pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, e as resoluções do Cremerj reforçam esses direitos.”

Confesso que a postura do Cremerj me causa profunda irritação. Desde que o assunto “parto domiciliar” voltou à pauta por causa da matéria do Fantástico, a atitude do conselho tem sido um tanto belicista. Mas em vez de esbravejar, vou tentar uma abordagem diferente. Para quem não sabe, sou editora de livros. Por acaso, ontem acompanhei um autor, o professor Stuart Diamond, numa palestra. O tema do livro Consiga o que você quer (Editora Sextante) e de sua palestra é a negociação, e como professor da Wharton Business School – uma das mais conceituadas escolas de negócios do mundo – o cara sabe do que está falando. Tirei o seguinte ensinamento do livro do Prof. Diamond: “para persuadir pessoas com percepções diferentes, você precisa começar pela noção de que seus ‘fatos’ – seus pensamentos, ideias e percepções – são invisíveis para elas. O que está claro para você pode nunca ter sido visto pelo outro” (minha ênfase).

Com isso em mente, surgiu a ideia para meu primeiro post sobre o assunto: esclarecer para o Cremerj, e para todos que estão inclinados a concordar com sua postura, o que eu e outras ativistas enxergamos que pode não ser evidente para quem não é tão apaixonado e bem-informado sobre o assunto (no caso, o parto humanizado). A ideia é tornar os nossos fatos visíveis e abrir espaço para uma discussão franca e respeitosa. Sem necessidade de resoluções ou ameaças. Combinado?

1º fato invisível: Quem faz o parto é a mulher

Lindo cartaz feito pela designer Thalita Dol Essinger para a Marcha pela Humanização do Parto.

A protagonista do parto é a mulher. Que fique claro: a gestante (sei lá, vai que entendem que é a doula ou a parteira!). O papel da equipe – incluindo do médico – é permitir que a mulher “faça” o parto: dilatando, se abrindo, expulsando o bebê e depois a placenta. A mulher fará esse trabalho melhor onde ela se sentir bem, e ao lado de quem faça bem a ela (não sou eu quem inventei isso – a posição é da OMS!). Como a função principal da doula é apoiar a mulher, oferecendo suporte emocional e físico, é bastante provável que, em se tratando de mulheres bem informadas que dispõem dessa opção, muitas vão optar por receberem esse tipo de acompanhamento.

2º fato invisível: O parto mais seguro é aquele que mais se aproxima do fisiológico

Já é batido dizer que o parto mais seguro para a mãe e para o bebê é o vaginal (aliás, o outro não é parto, é cirurgia, mas isso é assunto para outro post). Nenhum médico ousaria dizer o contrário, porque isso é fato estabelecido há décadas. Mas nós, ativistas da humanização, vamos além: entendemos, com base em estudos (como aqueles compilados pela revisão Cochrane) e nas recomendações da OMS, que o parto mais seguro é aquele que se mantém o mais próximo possível do fisiológico, sob o efeito dos hormônios e instintos naturais da mulher e do bebê (como nos outros animais). Estudos indicam que a grande maioria das gestações de baixo risco ocorrerão desta forma se a equipe evitar intervenções de rotina (desnecessárias até que se prove o contrário).

3º fato invisível: A mulher tem o direito de decidir o que será feito com o seu corpo

Essa afirmação me parece bastante óbvia, mas estou seguindo religiosamente o meu novo guru Stuart Diamond, então resolvi deixar registrado. O corpo mais afetado no parto é o da mulher. E o do bebê. A mulher, enquanto mãe, quer o melhor para o bebê (lógico). Então, na verdade, a opinião que interessa é a da mãe (já que ela sabe de si e, mais do que ninguém, sabe também do seu filho). Portanto, se a mãe quiser parir no hospital, em casa, ou se quiser ser operada, vale o que ela decidir. Se quiser parir deitada, na banheira, de quatro, ou de ponta cabeça (duvido), ok também. Se escolher parir na presença do médico, do marido, da doula, do cachorro e do papagaio, que seja! O Cremerj, ao tentar tirar o direito ao parto domiciliar e ao acompanhamento da doula (figura esta que apoia a mulher em tempo integral), acaba limitando esse direito e coloca o médico no papel tutelar de decidir sobre o corpo da mulher. O médico, a parteira e a doula não têm o direito de tomar decisões pela mulher nem de coagi-la a escolher a opção que ele/ela deseja: seu papel é informar, com base nas melhores práticas (evidências) e, em segundo lugar, nas suas experiências.

4º fato invisível: O médico tem o direito de praticar a medicina baseada em evidências

Talvez a maior injustiça da postura do Cremerj seja o cerceamento do direito do próprio médico de fazer o seu trabalho. Vou explicar: se não quiserem ser alvos de processos, arriscando até mesmo a cassação de seus registros, os obstetras humanizados são forçados a seguir a determinação do Conselho, mesmo que eles apoiem o parto em casa ou em centros de parto normal (em que a gestante é acompanhada por enfermeiras obstétricas ou obstetrizes, como no modelo vigente na Europa e no Japão) . Isso deve ser especialmente dificil quando as resoluções impostas vão contra as evidências científicas sobre melhores práticas,  o que é o caso tanto para partos domiciliares em mulheres de baixo risco (que são seguros tanto quanto partos hospitalares) quanto para a presença das doulas (que aumentam a satisfação materna e diminuem as intervenções).

5º fato invisível: A presença da doula é comprovadamente benéfica e condizente com melhores resultados maternos e neonatais

É a terceira vez que faço essa afirmação e, para não me repetir muito, vou parar por aqui. Mais informações no link para o estudo feito sobre apoio continuo a mulheres durante o trabalho de parto e parto (pdf aqui).

Vou parando por aqui. Mas, antes disso, queria pedir três coisas:

1. Compartilhem essas informações – quem sabe assim não chega até a caixa de entrada ou até o mural de alguém do Cremerj e possamos dialogar com as cartas na mesa?

2. Escrevam em seus blogs, murais, twitters sobre o direito SOBERANO da mulher de escolher onde, com quem e em que condição ela quer ganhar seu bebê.

3. Compareçam à Marcha Pela Humanização do Parto, que ocorrerá no Rio, no dia 5 de agosto, às 14:00, na praia de Ipanema (saindo do posto 9). O lindo convite, feito pela talentosa Thalita Dol Essinger, está abaixo.

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Série Inspiração: Grantly Dick-Read sobre a dor do parto

Um dos temas que mais dá ibope quando o assunto é parto é a famosa e abominável DOR. Se nos pautarmos pelas imagens que vemos em novelas e filmes , ou pelas conversas com mulheres que tiveram experiências traumáticas ao parir, é compreensível chegarmos à conclusão de que “parto = dor” e ponto final. Não é de se espantar que tantas pessoas fogem do parto normal por causa da crença de que parir necessariamente significa sofrer. Mas quem disse que é sempre assim?

Talvez um dos primeiros a questionar a obrigatoriedade da relação “parto = dor” foi o obstetra inglês Grantly Dick-Read no início do século XX, considerado um dos pais do movimento em prol do parto natural. O clássico Childbirth without Fear (Parto sem medo), publicado sob o título “Revelations of Childbirth” (Revelações do Parto) em 1942 e concluído em 1959, colocou um ponto de interrogação nessa relação e ofereceu a gerações de mulheres um arcabouço interessante para repensar essa ligação – e desfazê-la! Não é à toa que o livro continua disponível no mercado há mais de meio século (não em português, infelizmente) e que tenha servido de inspiração para “gurus” do parto natural como Michel Odent e Ina May-Gaskin.

Grantly Dick-Read (1890-1959), um verdadeiro herói

O trecho que selecionei para o quarto post da série Inspiração foi traduzido do capítulo 3, em que Dick-Read nos revela o episódio que transformou para sempre a sua carreira e a vida de várias mulheres, que com sua orientação conseguiram parir sem medo e sem dor.

Uma filosofia do parto

Frequentemente me pergunto se a mulher de Whitechapel, cujo nome esqueci há muitos anos, tem noção da enorme influência que teve em minha vida por conta de um simples comentário que me fez. Por alguma razão a situação como um todo deixou uma impressão indelével na minha mente, embora na época eu não fazia ideia de que seria a semente que mudaria o curso de minha vida.

De bicicleta, vencendo a lama e chuva, chegara à Rua Whitechapel, entre duas e três horas da madrugada, e virara à direita e à esquerda, e depois inúmeras direitas e esquerdas, até chegar a um casebre perto dos arcos da ferrovia. Tateei e tropecei ao subir por uma escada na penumbra e finalmente abri a porta de um quarto de aproximadamente 10 metros quadrados. Havia uma poça d’água no chão do quarto, a janela estava quebrada, a chuva entrando pelo vão, a cama não estava feita e um dos lados era sustentado por uma caixa de açúcar. Minha paciente estava deitada, coberta com sacos e uma velha saia preta. O quarto estava iluminado por uma única vela, colocada na boca de uma garrafa de cerveja sobre uma estante. Uma vizinha trouxera uma jarra d’água e uma bacia; eu tivera que trazer meu próprio sabão e uma toalha. Apesar deste ambiente – que mesmo há trinta anos era uma desgraça em qualquer país civilizado – logo me dei conta de que havia uma atmosfera de quietude e benevolência.

Em tempo nasceu o bebê. Não havia comoção ou barulho. Tudo parecia transcorrer de acordo com um plano regrado. Houve somente um ponto de discórdia: eu tentara convencer minha paciente a permitir que eu colocasse uma máscara sobre o seu rosto e administrasse um pouco de clorofórmio [um anestésico popular na época] quando avistei a cabeça do bebê e a dilatação do canal era evidente. Ela, no entanto, se ressentiu da sugestão e com firmeza, porém docilmente, recusou essa ajuda. Era a primeira vez em minha curta experiência que eu fora recusado ao oferecer clorofórmio. Antes de partir perguntei a ela por que ela não quis a máscara. Ela não respondeu de imediato, mas olhou para a senhora que havia lhe assistido e para a janela pela qual entravam os primeiros raios do amanhecer; depois virou-se para mim e, tímida, respondeu: ‘Não estava doendo. Não era para doer, era, doutor?’

Nas semanas e meses que se seguiram, quando eu sentava com mulheres em trabalho de parto, mulheres que pareciam estar aterrorizadas e em agonia por conta do parto, essa frase voltava a retumbar em meus ouvidos: ‘Não era para doer, era, doutor?’ até que, finalmente, mesmo com minha mente ortodoxa e conservadora, comecei a ver a luz. Comecei a perceber que não havia nenhuma lei da natureza e nenhuma regra que justificaria a dor do parto. Não muitos anos mais tarde a guerra me levou a terras estrangeiras. Lá presenciei mulheres dando a luz de forma muito natural e aparentemente sem dor, mas também vi aquelas que sofreram com a dor e cujas lembranças do nascimento do filho eram experiências horríveis. Quando a guerra por fim cessou e eu voltei a exercer a medicina no Hospital de Londres, como residente em obstetrícia, o mesmo problema ocorreu. A maioria das mulheres aparentava sofrer muito, mas volta e meia conhecia uma mulher calma que não desejava anestésicos nem parecia estar passando por um desconforto insuportável.

Era muito difícil explicar por que uma deveria sofrer enquanto a outra aparentava não sentir dor alguma. Não parecia haver muita diferença nos partos em si; ambas tinham que fazer o mesmo esforço; o fator tempo não divergia tanto um do outro. […] No entanto, aos poucos ficou claro para mim que era a paz de um trabalho de parto relativamente indolor que o destacava dos outros. Havia uma calma, parecia até mesmo uma fé, no desfecho normal e natural do parto.

*

A conclusão do dr. Dick-Read sobre a origem e o mecanismo da dor do parto fica para um próximo post (prometo!). O que quero deixar para você hoje é uma sementinha: tecnicamente, é possível ter uma experiência semelhante à jovem de Whitechapel e parir sem sofrimento! E mesmo que não seja totalmente indolor, é justo esperar que, no ambiente apropriado, com a assistência adequada, as sensações intensas provocadas pelo trabalho de parto não sejam tão insuportáveis quanto as cenas das novelas nos levam a crer. Afinal, existem muitas formas de aliviar a dor – desde massagens, carinho, água quente, meditação e anestésicos – e uma boa equipe saberá oferecê-las se for preciso (mais sobre isso no futuro).

O recado do post de hoje é este: Se você nunca passou pelo parto antes, ou se nunca vivenciou este momento com a tranquilidade e o apoio que tal evento merece, como pode saber que não suportará as dores? Em vez de fugir do parto normal por medo da dor será que não vale a pena se munir do conhecimento e das ferramentas necessárias e esperar para ver como será a sua experiência?

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Série Inspiração: Pais contemporâneos, bebês atemporais, por Meredith Small

Por mais (pós)modernos, urbanos e “antenados” que sejamos, a verdade é que nossos bebês são pré-históricos: biologicamente são iguaizinhos aos bebês que nasceram há 5000 anos. Também são idênticos aos bebês que nascem hoje em países e culturas muito diferentes da nossa. Essa é a tese que gerou um clássico americano, escrito pela antropóloga e professora da Universidade de Cornell Meredith Small, Our Babies, Ourselves (Nossos bebês e nós mesmos), publicado em 1998 pela Achor Books. O trecho de hoje é da conclusão desse livro maravilhoso (nunca editado no Brasil, infelizmente).

Pais contemporâneos, bebês atemporais

Criar filhos é um verdadeiro circo de egos e necessidades, limitações biológicas e expectativas evolutivas, que interagem entre si. Como em tudo na vida, ser pai é também uma série de concessões; não existe uma maneira perfeita, somente uma série de opções, um bando de caminhos possíveis, que direcionam os adultos na entrépida função de criar seus bebês. E é mesmo tão trabalhoso que faz sentido se perguntar por que as pessoas têm filhos afinal. Mas como me apontou Jim McKenna quando comentei sobre o investimento excessivo que os recém-nascidos requerem: “A evolução nunca nos prometeu um mar de rosas”. Nossa natureza envolve passar para frente nossos genes e isso significa pagar o preço que os bebês exigem. Criar filhos é para ser, de fato, muito trabalho, além de cansativo para o organismo adulto, porque é assim que o animal humano foi concebido. Se nós, enquanto pais, aceitarmos essa verdade fundamental – que ter um bebê e criá-lo até a idade adulta significa uma enorme limitação na vida, nos recursos, nos nossos aspectos físico e emocional e, considerando o tamanho da responsabilidade, não é para qualquer um – então estaremos efetivamente alinhados e de acordo com nossa herança evolutiva.

Na interseção dessa verdade fundamental está a saída de emergência da cultura, que nos permite tentar diversas maneiras de adminstrar essa função. A cultura e a tradição fazem parte da nossa flexibilidade, e nos podemos, portanto, mudar as normas da cultura porque somos a cultura. […] Ninguém espera que uma mãe passe a morar numa oca e viva da caça ou da coleta carregando um bebê nas costas. Mas é razoável sugerir que dormir com um bebê faz bem e que não o transformará numa criatura dependente e chorona. Talvez não queiramos alimentar um bebê continuamente como os Khoisan [um grupo étnico africano], mas uma mãe pode certamente decidir reduzir o intervalo entre as mamadas, ou alimentar sem horários fixos se ela quiser. E não existe vergonha alguma em usar o bebê num sling ou carregador em vez de deixá-lo no cercadinho. A cultura não deve ser uma ditadora, mas uma facilitadora.

E todos os pais têm a opção de rever e aceitar ou rejeitar sua bagagem cultural. Por exemplo, pais ocidentais com todas sua sofisticação tecnológica podem tomar decisões pessoais sobre os produtos que os fabricantes lhes empurram na tentativa de facilitar a vida. Trata-se de avaliar esses aparelhos sob um entendimento do bebê informado pela ótica da evolução e diversidade cultural, que nos dá a opção de rejeitar essas supostas inovações se quisermos. Podemos decidir que o cercadinho, quando tem gente disponível para segurar o bebê, não é a melhor opção, ou que usar um bebê conforto para confinar o bebê na sala de estar não é a maneira ideal para ele passar o dia. Podemos escolher reverter a direção da babá eletrônica e deixar que o bebê, sozinho em seu berço, se exponha aos barulhos da família ao invés de excluí-lo do convívio social.

O bebê humano não é meramente um aglomerado do reflexos que se transforma num adulto consciente. Os bebês foram, e continuam sendo, moldados pela evolução para passar pelo canal de parto, para expressar suas necessidades através do choro e da inquietação, e para interagir com o mundo a sua volta. […] É assim que o bebê adentra nesse mundo, mas não é necessariamente assim que o mundo o enxerga. Como os seres humanos demoram tanto para se desenvolverem, há oportunidades, e tempo, de sobra para desencontros e malentendidos ocorrerem enre bebês, cujas necessidades internas o levam a esperar certas coisas, e seus pais, que querem simplesmente seguir em frente com suas vidas. É a famosa faca de dois gumes – a evolução forneceu aos humanos um amplo campo de atuação, porém às vezes não fazemos ideia de como suprir nossas necessidade de forma mais eficiente. Somos destinados a fazer sexo, gerar bebês que contêm nossos genes, e assegurar que eles cheguem à idade para procriarem – este é o plano que a natureza tem para nós. Mas há muita folga no sistema, muito espaço para manobrar, e muitas formas de fazer errar. “A evolução nos deu uma arena em que cuidar de crianças pode ser aprendido”, explica o antropólogo Jim McKenna, “mas não nos diz o que deve ser aprendido, então aprendemos tudo quanto é maluquice sobre os bebês”. […]

Aceitar que os bebês são às vezes um fardo e depois tentar criá-los num estilo que não rompe com a díada pai/mãe-bebê, mas que facilita sim a vida, é o desafio que todos nós enfrentamos. Na maioria das vezes, isso significa confiar no instinto paterno/materno – isto é, o bom sense, que também evoluiu para ser um guia. E os bebês também nos ajudam, com seus braços erguidos, seus sorrisos sapecas, e seu choro e sua irritação, que nos informam se estamos no caminho certo.

*

Se você é leitor do blog, deve ter percebido que as ideias de Meredith Small e de outros adeptos da “etnopediatria” (como Harvey Karp e Jim McKenna) servem como pano de fundo aos posts sobre babywearingexterogestação e cólica. As minhas “primeiras impressões” sobre os valores que norteiam a criação de filhos em vários países também segue um pouco essa linha antropológica…

Mas quero deixar claro que não estou incentivando ninguém a romper com as convenções sociais da nossa cultura ou alegando que tudo o que fazemos é errado. O importante é saber que, com tanta informação disponível hoje sobre as práticas de outros povos e de outros tempos, temos a chance de aumentar nosso leque de opções ao invés de sermos obrigados a repetir, de forma automática e sem senso crítico, as atitudes de nossos amigos e parentes – especialmente se essas escolhas não estiverem alinhadas com o que julgamos ser melhor para nossos filhos nem com as nossas próprias crenças e necessidades. É essa diversidade de opções e liberdade de escolha que eu curto. Para usar as palavras da autora prestigiada:  A cultura não deve ser uma ditadora, mas uma facilitadora. 

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Série Inspiração: Perguntas profundas sobre o parto, por Sheila Kitzinger

Se tem alguém que admiro e penso “Putz, quero ser igual a ela quando eu crescer” esse alguém é a Sheila Kitzinger (bom, tem a J.K. Rowling também, mas aí é sonhar alto demais!). Sheila Kitzinger, como eu, é antropóloga e ativista do parto natural, e já escreveu mais de vinte livros. Agora uma senhora de cabelos brancos, ela continua escrevendo, lecionando e se pronunciando em prol do direito de escolher o local e a assistência para o parto.

O trecho abaixo é da introdução do livro Rediscovering Birth (Redescobrindo o Parto), publicado em 2000 pela Little, Brown e relançado no ano passado pela Pinter & Martin. A tradução é minha.

A sábia e bem humorada Sheila Kitzinger. A foto é da GETTY.

Perguntas profundas sobre o parto

Por milhares de anos as mulheres pariram cercadas por pessoas conhecidas em um local bastante familiar, geralmente a própria casa. O saber é compartilhado pelos participantes e o parto/nascimento é um evento social.

Nas atuais sociedades industriais do hemisfério norte, quando uma mulher engravida lhe apresentam várias opções. Mas se for o seu primeiro filho ela só tem uma vaga noção de como é a sensação de parir e de como outras mulheres passaram por isso. O parto é destacado do resto da vida das mulheres e aceito como sendo um assunto reservado ao saber dos especialistas. Como nossa cultura de parto/nascimento é intensamente medicalizada, as escolhas encontram-se nos extremos: ter uma peridural ou fazer sem analgesia; […] optar pela cesariana ou ter um parto vaginal; […] aceitar todas as intervenções propostas ou tentar um ‘parto natural’.

Mas não precisa ser assim. Para fazer escolhas genuínas convém ter uma perspectiva mais ampla. Uma mulher pode fazer uso das práticas e tecnologias da obstetrícia moderna se ou quando ela precisar delas. E ela pode explorar tudo o que sabemos sobre parto e nascimento ao longo do tempo e em diferentes culturas para conseguir partejar usando o conhecimento compartilhado de inúmeras mulheres. Enquanto reconhecemos que em muitas sociedades as mulheres têm vidas difíceis, é fácil ignorar os aspectos positivos de práticas tradicionais de parto e as muitas maneiras de manter o parto/nascimento no âmbito da normalidade, permitindo que aconteça de forma fisiológica, ao invés de ser controlado pela medicina.

Em grande parte das culturas industrializadas do hemisfério norte dá-se por certo um tipo específico de parto/nascimento.

Ele acontece no hospital, cercado por desconhecidos. A gravidez e o parto são “gerenciados” por cuidadores que pensam saber mais sobre o que está se passando do que a própria gestante. Seu corpo é visto como uma máquina sob constante risco de quebrar. A extração segura do bebê do corpo materno que o ameaça depende da habilidade técnica de um grupo de profissionais com um sistema de conhecimento hermético e exclusivo. O parto então é um evento médico e frequentemente cirúrgico.

Ter um bebê no hospital é tornar-se uma paciente. Você passa a ser uma integrante temporária de um sistema rigidamente organizado, hierárquico e burocrático. O procedimento de admissão é o momento em que a instituição toma posse do seu corpo. Trata-se de uma cerimônia em que você é cadastrada, classificada, examinada, registram os batimentos cardíacos fetais e medem a sua pressão.

Na maioria dos hospitais a mulher entrega a própria roupa, símbolo de sua individualidade. É provável que ela seja separada de amigos e parentes, com a exceção de um único acompanhante. Espera-se dela o mesmo de uma criança, que ela obedeça as instruções, evite chamar a atenção, e se comporte bem. Ela pode ser chamada pelo nome, mas não chamará o médico ou a médica pelo primeiro nome. Ou ela pode deixar de ter nome ao ser chamada pelos profissionais de ‘a cesárea do quarto 16’, ‘a multípara’, a ‘do parto induzido’ ou, pior de tudo, ‘a mulher com o plano de parto’. [*No Brasil prefere-se o reducionista e infantilizante “mãezinha”]

Quando os residentes de um hospital de Boston tentaram definir “uma boa paciente”, um médico respondeu: “Ela faz o que eu digo, escuta o que digo, acredita no que digo…” A boa paciente é dócil. Ela agradece os profissionais porque eles salvaram seu filho. Ela demonstra gratidão independente de o que foi feito com ela. Mulheres que se recusam a entrar nesse molde são ‘pacientes difíceis’.

O parto é regulado por hormônios artificiais frequentemente terminando numa cirurgia. A mulher é atendida por uma equipe profissional. Ela pode estar ligada a equipamentos eletrônicos, sedada da cintura para baixo por anestésicos e ter seu útero artificialmente estimulado. Aí fazem uma episiotomia nela, aplicam fórceps ou vácuo extrator no expulsivo, ou toma-se a decisão de fazer uma cesárea. Ou os médicos podem achar melhor evitar o trabalho de parto por completo, marcando uma cesariana eletiva. Algumas mulheres optam pela cesariana porque foram levadas a crer que esta é a forma mais fácil, segura e indolor de ter um bebê.

Toda instituição tem regras e normas práticas. Quanto maior a instituição, mais regras ela tem. Um hospital tem protocolos que facilitam sua administração, e possibilitam que aqueles no escalão mais alto regulem as ações de seus subordinados. A rotina garante que as pessoas cooperem em tarefas sem precisarem fazer perguntas constrangedoras nem pensar muito, então são raramente desafiadas. Quando uma pesquisa baseada em evidências é publicada mostrando que uma prática é inútil ou que faz mal, leva cerca de 15 anos para mudar a prática obstétrica. […]

O parto é um evento médico que geralmente acontece no hospital e é pensado de forma praticamente exclusiva sob a ótica do risco. Se você decide parir em casa é provável que tenha que superar muitos obstáculos criados pelo sistema médico. Parentes e amigos dirão: ‘Você é muito corajosa!’, ‘Você não fica com medo de algo dar errado?’ e, frequentemente, ‘Você está sendo egoísta’ ou ‘Você não está pensando no bebê’.

Um trabalho de parto normal de uma mulher saudável costuma ser tratado com todas as intervenções características de partos de alto risco. Tratado como se fosse de alto risco, o parto costuma se tornar de alto risco.

*

Esse trecho contém tanta sabedoria – frases para reler, sublinhar, compartilhar no Facebook e twittar – que não preciso dizer mais nada. Mas como o texto de Kitzinger não contém uma pergunta sequer (apesar do título), vou encerrar com uma: quais perguntas precisam ser feitas (para nós mesmas, os médicos, as seguradoras, e as instituições públicas e privadas de saúde) para melhorar a experiência do parto e do nascimento no Brasil e será que temos a coragem de fazê-las?

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Série Inspiração: O último tabu, por Carlos González

Junho foi um mês tão intenso no universo da humanização do parto e do nascimento que não sobrou nenhuma energia para atualizar o blog. Como não quero deixar passar muito tempo sem postar, e enquanto a inspiração para escrever algo original não vem, resolvi “pegar emprestado” as palavras de autores e ativistas que admiro e montar uma série “Inspiração”.

Serão trechos de livros traduzidos por mim ou textos escritos por terceiros (com os devidos créditos) para inspirar e instigar a reflexão. O primeiro da Série Inspiração é um trecho que traduzi das primeiras páginas da edição inglesa do livro Bésame Mucho, do pediatra espanhol Carlos González, publicada pela excelente editora Pinter & Martin. Em seguida, alguns comentários.

O queridíssimo e perspicaz pediatra Carlos González.

O último tabu

A nossa sociedade aparenta ser muito tolerante porque tanta coisa que era proibida há 100 anos hoje é considerada completamente normal. E, no entanto, se analisarmos mais a fundo, veremos que existem coisas que há 100 anos eram normais e que hoje são proibidas. Tão completamente proibidas que até nos parecem normais; tão normais quanto as proibições e os tabus de nossos bisavós lhes pareciam ser.

[…] Nossa sociedade, que é bastante tolerante em alguns aspectos, é menos tolerante quando se trata de crianças e mães. Esses tabus modernos podem ser classificados em três grupos.

  • Relativos ao choro: é proibido dar atenção às crianças, colocá-las nos colo ou lhes dar o que desejam quando estão chorando.
  • Relativos ao sono: é proibido deixar as crianças adormecerem em seus braços ou enquanto mamam, ninar ou embalar os bebês para que caiam no sono, dormir com eles na mesma cama.
  • Relativos à amamentação: é proibido amamentá-los no lugar ou na hora que for, ou amamentar uma criança que “passou da idade”.

Quase todos esses tabus têm um elemento em comum: eles proíbem contato físico entre mãe e filho. Por outro lado, todas as atividades que tendem a reduzir o contato físico e aumentar a distância entre mãe e filho são amplamente recomendadas:

  • Deixar a criança sozinha no quarto.
  • Transportá-la num carrinho de bebê ou bebê conforto.
  • Colocá-la na creche o mais cedo possível, ou deixá-la aos cuidados dos avós ou, melhor ainda, de uma babá (as avós “estragam” as crianças!).
  • Mandá-la para uma colônia de férias tão logo seja possível e pelo máximo de tempo possível.
  • Reservar “um tempo a sós” com o cônjuge, sair sem as crianças, curtir a vida “de casal”.

Embora algumas pessoas tentem justificar tais recomendações, insistindo que são para “ajudar as mães a descansarem”, o fato é que não proíbem atividades cansativas. Ninguém diz: “não passe muito tempo arrumando a casa ou seu marido ficará mal acostumado com uma casa limpa” ou “você acabará tendo que lavar suas roupas quando ele sair de casa”. Na verdade, é geralmente a parte mais prazerosa da maternidade que é proibida: deixar seu filho adormecer em seus braços, niná-lo, curtir a sua companhia.

Talvez seja por isso que criar filhos é tão desagradável para algumas mulheres. Requer menos trabalho do que antes (temos água corrente, máquina de lavar, fraldas descartáveis…), porém há menos recompensas. Numa situação normal, em que a mãe está livre para cuidar do filho como ela bem entender, o bebê chora pouco e, quando o faz, é doloroso para a mãe, e ela sente compaixão (“Coitadinho, o que houve?”). No entanto, quando a proíbem de pegá-lo no colo, dormir com ele, oferecer o peito ou consolá-lo, o bebê chora ainda mais, e a mãe fica impotente diante desse choro, e sua reação se torna zangada ou agressiva (“O que foi dessa vez!”).

Todos esses tabus e preconceitos fazem as crianças chorarem, mas também não fazem seus pais mais felizes. Então a quem eles agradam? Talvez aos pediatras, psicólogos, pedagogos e vizinhos que os recomendam? Eles não têm direito de lhe dizer o que fazer ou como viver sua vida ou como tratar seu filho.

Famílias demais sacrificaram a própria felicidade bem como a felicidade de seus filhos no altar de alguns preconceitos infundados.

O objetivo deste livro é derrubar mitos, quebrar tabus, e oferecer a toda mãe a liberdade para desfrutar da maternidade da maneira que deseja.

*

Talvez a escolha do termo “proibido” seja forte. Podemos substituir por “mal visto”. Ninguém proíbe a proximidade, o carinho, entre mãe e filho. Mas que esse carinho causa estranhamento em muita gente e até desconforto em uma boa porção, isso é inegável! Se você acha que estou exagerando, considere só essa lista com as atitudes diametralmente opostas àquelas que o dr. González ofereceu:

  • Ficar sempre no mesmo cômodo que a criança (inclusive levando-a para dormir em seu quarto).
  • Dispensar o carrinho e usar um sling ou carregador.
  • Ficar em casa nos primeiros anos, abrindo mão da carreira ou trabalhando de casa em meio período.
  • Negar-se a viajar sem os filhos, optando por levá-los a viagens internacionais ou preferindo passar as férias em casa.
  • Sair a três (ou mais) e não mais”a dois”, deixando para curtir os momentos a sós em casa quando a cria estiver dormindo.

Alguém duvida que esses comportamentos suscitariam olhares enviesados de estranhos, críticas de conhecidos e desconhecidos, palpites nada bem vindos e até mesmo discussões homéricas com parceiros e parentes?

Pois bem. Reflitam, questionem, e sintam-se livres para cuidar de seus filhos como manda a sua intuição e não as opiniões dos palpiteiros de plantão.

Até a próxima inspiração.

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