Há uma semana, entrei no site da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) e dei de cara com o logo da Nestlé. Fiquei tão indignada que estou com um gosto amargo na boca até hoje. Esse patrocínio de difícil digestão é de uma incoerência, uma cara de pau e um mau gosto tão grotescos que decidi escrever meu primeiro post com teor “político”. Como o assunto é muito abrangente e complexo, será separado em partes. Não quero usar o blog para desabafos nem para levantar bandeiras, mas, nesse caso, foi impossível ficar calada.
Porque eu sei de tudo o que a Nestlé (entre outras) já fez e continua fazendo em desserviço à amamentação no Brasil e no mundo. E sei que a saúde infantil não é do interesse deles. Se fosse, não estariam vendendo leites artificiais e sim promovendo a amamentação; não estariam comercializando comidas a base de farinha e açúcar e sim divulgando os benefícios de uma nova maneira de alimentar nossas crianças; não estariam incentivando o “fast food infantil” (i.e. potes de alimentos triturados) e sim soluções para oferecer comidas de verdade, frescas e vivas, para seres humanos em desenvolvimento. A verdade é que a missão dos fabricantes de fórmula infantil (lucrar com a venda de alimentos processadas) é totalmente contrária aos objetivos da SBP, que é, ou deveria ser, zelar pela saúde das crianças brasileiras.
Já imagino os protestos: “Ah, ‘pera lá, Clarissa, não precisa demonizar a Nestlé. Afinal, vivemos numa sociedade capitalista e não há nada de errado em enxergar uma “demanda” por leite artificial e correr atrás desse mercado. E a Nestlé fabrica um produto que salva vidas de bebês que não podem amamentar.” Sim, sim, aceito a premissa capitalista e acredito (bom, tento acreditar) que essas empresas se empenham para oferecer um produto de qualidade para seus consumidores. O problema é a questão da demanda. Porque a Nestlé (e outras empresas, mas ela primordialmente) não simplesmente enxergou uma demanda existente (no caso, bebês ou mães que não conseguiam amamentar): ela ativamente criou essa demanda, convenceu os pediatras a legitimá-la e fomentou mitos como “o leite artificial é um substituto adequado ao leite materno”, “pouco leite é um problema real” e “amamentar é um estresse desnecessário na vida da mulher moderna”.
Mas antes, como sei que corro o risco de ser taxada de “xiita da amamentação”, quero deixar bem claro o seguinte: sou a favor do direito de optar pelo aleitamento artificial. Preparado da maneira correta, com mamadeiras e bicos higienizados, o leite artificial é seguro e, portanto, é uma escolha aceitável para quem não pode ou prefere não amamentar. Mas o direito de optar pressupõe acesso a informação correta e de confiança; caso contrário, é uma imposição disfarçada de “escolha”. Em outras palavras, a opção pelo aleitamento artificial não pode ser o resultado de mitos, mentiras ou falsas indicações médicas. Mas a realidade é justamente essa: um campo minado de mitos e mentiras, compradas inclusive por alguns pediatras (cortejados e seduzidos pelos fabricantes de leite artificial) e pela sociedade como um todo. Infelizmente, como pretendo mostrar, a Nestlé e as outras empresas (com o apoio da classe médica) venderam para o público informações enganosas. O propósito dessa série de posts é falar sobre o aspecto econômico e político da amamentação e, por fim, oferecer algumas dicas para que você não se torne vítima de uma situação que enche os bolsos dos acionistas dessas empresas e dos pediatras que os apoiam.Vamos por partes.
Mentira #1: o leite artificial é um bom substituto do leite materno
Desde que foi criado o processo de fabricação de leite em pó, empresas como a Nestlé buscaram um público para sua invenção – entre seus consumidores em potencial, jovens mães querendo ou precisando, especialmente por razões econômicas, se libertar da “árdua tarefa” de amamentar. O primeiro passo era vender a ideia de que seu produto era seguro e adequado. Anúncios como este de 1903 sugeriam que o alimento desenvolvido pela Nestlé produzia bebês fortes e rechonchudos que se tornariam “os trabalhadores do futuro”. O que esses anúncios não mostravam (óbvio) é que, na época, 20% dos bebês que tomavam essas fórmulas não sobreviviam ao primeiro ano de vida (comparado a 3% para bebês que mamavam no peito). Felizmente, desde então, práticas de higiene melhoraram e as empresas investiram muito para aprimorar seu produto. Mesmo assim, a mortalidade infantil de bebês que não tomam leite materno é duas vezes maior que a de bebês que mamam exclusivamente no peito – e esse é o índice para países desenvolvidos.
Mas isso não impede os fabricantes de leite artificial de tentarem convencer o público do valor de seu produto. A cada descoberta das propriedades incríveis do leite humano, as empresas correm para tentar incorporar novos benefícios a sua fórmula; recentemente, foram os ácidos graxos essenciais e os probióticos. Tudo isso para que nós, começando pelos pediatras, compremos a ideia de que o leite artificial (LA) é “quase tão bom quanto” o leite materno (LM). As empresas fabricantes de LA querem que a gente acredite que, se o LM representasse a nota “10”, o LA seria um “9”. Desculpa, mas isso não é verdade. Há uma diferença enorme entre ser “adequado” e ser “quase tão bom quanto”. O leite artificial é apenas adequado. Ele não chega aos pés do leite materno humano. O leite artificial pode engordar seu bebê e fazê-lo crescer e se desenvolver bem, mas é apenas adequado. Além de conter substâncias que não são próprias para bebês humanos (a proteína do leite de vaca), não é um alimento vivo, não responde às necessidades particulares daquele bebê naquele momento e não contém uma série de substâncias que protegem e melhoram sua saúde (anticorpos, células-tronco, bactérias benéficas, entre outras substâncias que ainda serão descobertas). Portanto, o leite artificial é apenas um pobre substituto do leite humano. Se eu tivesse que dar uma nota, seria “6” – dá pra passar de ano, mas não é lá grandes coisas. Saiba que a Organização Mundial de Saúde recomenda fórmulas infantis somente como uma quarta opção, depois do leite direto do seio materno, o LM oferecido em copinho ou mamadeira, e o leite de outra mulher via bancos de leite materno ou ama de leite. E o seu pediatra, diz o mesmo?
Pense nisso, espalhe a notícia dessa aliança e, se quiser saber mais sobre as táticas da Nestlé e de suas concorrentes, dá uma espiadinha nesse texto (em inglês). Prometo publicar a parte 2 em breve.
Leia também: